14-03-2012
O interlocutor imaginário
Todo mundo tem um interlocutor imaginário,
com que trava batalhas
e longos banquetes de diálogos,
dirigindo peripatético,
nos dias úteis do calendário
a caminho de casa ou do trabalho.
Uma amiga,
um amigo,
um novo amor,
um caso antigo,
um ilustríssimo senhor desconhecido.
Eu mantenho diálogos constantes contigo,
de dentro da minha alegria, solidão ou agonia.
Uma espécie assim de bem nutrida
e não tratada
esquizofrenia.
Nos sinais vermelhos, te narro as agruras do dia.
Nos engarrafamentos,
falo das minhas nervuras.
Te mostro gravuras, sentimentos,
fotografias que tiro
com os flashs dos olhos e da mente.
Todos temos nosso lado assim
demente
nosso leitor imaginário,
a voz e o ouvido atento
para o qual escrevemos,
um conjunto de traços,
mais ou menos idealizados.
E nesses diálogos
não há espaços
para perguntas sem respostas
ou silêncios
ou mal entendidos.
O problema é que continuamos a sós
e recolhidos a nós,
e daqui a pouco,
terão os dias perdido
sua utilidade
e será novamente domingo.
Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=EeNUsrw8qA8
23:13 | Permalink | Comentários (0) | Tags: "antologia de textos, músicas e pessoas"
11-03-2012
La non-lectrice
Antes eu ouvia apenas
as vozes do aquém e do além.
Lia somente
as palavras impressas em tinta,
que me pareciam querer bem,
as que aceitavam ser espremidas
entre os limites
das margens e das linhas.
Hoje, ouço principalmente os silêncios,
que são por onde melhor se comunica.
Leio na branca página
o que se diz no invisível.
Se não está escrito,
não quer dizer que exista ou não exista
ou que queira ou não queira ser dito.
(Bem-me-quer, mal-me-quer, não-me-quer.
As pétalas e folhas ao vento
são apenas um desfolhado
coração de mulher.)
Mas o grande perigo ou engano
ou martírio
tanto das palavras
quanto dos silêncios e vazios
é que são todos e ambos
ambíguos e polissêmicos,
e sujeitos e objetos
de nossos excessos
de imaginação,
desvarios,
de nosso desvios
de carência ou interpretação.
Então,
às vezes desejo sofregamente
uma nova condição:
ser uma não-leitora,
e ouvir apenas ruídos
e ver apenas manchas,
não signos.
E seguir não lendo
e não sentindo.
21:03 | Permalink | Comentários (0) | Tags: poemas
07-03-2012
O ornitorrinco albino da Malásia ( Ou simplesmente vida de mãe)
Às 6h30 da matina, seu despertador personalizado te acorda com seu toque especialíssimo:
"Mamãe, o solzinho já saiu a casinha dele. Vamos levantar."
E você é que ensinou a história do bendito solzinho que sai de casa. Você que queria tanto dormir só uns dez minutinhos a mais.
Você prepara a mamadeira e o café. Você tenta se arrumar enquanto ele insiste para que você brinque com ele de trenzinho. Você explica umas mil vezes que tem que trabalhar e não pode brincar. Você aguenta umas dez birras e os gestos dramáticos. Ele se atira emburrado na cama e no sofá, quando não se tranca no banheiro. Você continua sem saber de onde ele herdou tanto talento para a dramaturgia.
Você finalmente sai e trabalha e trabalha. Às 11h50, seu chefe te chama na sala para uma reunião. Você e os outros convidados esperam que ele conclua uma importante ligação, que não se conclui. Já é meio dia e você precisa levar seu filho à escola às 13h15. Tempo de trânsito até em casa pode chegar até 45 minutos. Você decide fugir, mesmo que o chefe fique uma arara e você leve uma bronca depois. Tudo bem, como se diz na roça, você já está ficando com o couro grosso.
Você foge e de repente se lembra que ainda não o ajudou a fazer a tarefinha da escola. E a tarefa, encomendada no final no dia anterior, inclui pregar uma fotografia de sua grande pequena família. Você percebe que das 5.832 fotos que você tirou de seu filho desde que ele nasceu, de apenas umas 5 ou 6 você consta, e que nenhuma delas você imprimiu.
Você corre a encontrá-la e imprimi-la e depois corre a chegar em casa e corre a pregar a tal foto e engolir a comida Prazo recorde. Você fez tudo isso em uma hora e 15 minutos. E seu filho está entregue na escola e você está pronta para o novo desafio escolar, que provavelmente consiste em arranjar algo bem comum, como uma fantasia de um ornitorrinco albino da Malásia que ele deverá vestir no próximo teatrinho da próxima festinha. As escolas atualmente parece que realizam todo o tempo uma grande gincana em que o desafio é a cada dia atender a uma nova e extravagante exigência
Aliás, por falar em festinha, você ainda se lembra do teatro de fim de ano, em que você gastou R$ 80 reais com uma fantasia de duende verde. Sim, ele aceitou vestir a fantasia, mas não aceitou pisar no palco, ele e mais uma única criança em toda a escola. Para sua alegria de mãe.
E falando ainda em escolinha, na sala de seu filho, há 12 crianças, mas pelo menos umas 20 festas de aniversário ao longo do ano, o que leva você a desconfiar de que algumas mães comemoram o aniversário de seus filhos mais de uma vez ao ano ou que têm gêmeos, pagando a escola para apenas um e alternando a freqüência. E quando há festa, logo há que comprar presente. E você só é avisada disso no último minuto do segundo tempo, ou seja, às 18h45 quando você é uma das últimas mães a chegar para buscar seu rebento.
E no entanto, você não se arrepende de sua escolha um só momento, pois todo dia, ao acordar e te beijar e te abraçar, ele te lembra que “o solzinho já saiu da casinha dele”.
15:38 | Permalink | Comentários (0) | Tags: "histórias agudas e crônicas", vida de mãe, maternidade, filhos