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30-12-2015

Fenestras

janela rachadura.jpg

Bati em muitas portas fechadas.

Algumas não se abriram porque o dono tinha se ausentado.

Fora tirar férias na praia ou na Europa

ou onde Judas perdeu as botas.

Outras porque a casa sempre estivera vazia, ainda que habitada.

Bati em muitas portas erradas.

Havia gente lá dentro, mas não quis abrir,

temendo assaltos de correntes de vento,

que eu fosse uma vendedora da palavra de Deus,

dos homens, de enciclopédias, livros, de bíblias,

do sétimo dia  e outras quinquilharias.

Algumas estavam apenas cerradas

e eu não suspeitava de que o morador até desejava receber visitas,

mas não havia forças à vista

ou estava acorrentado na cama em que se deitou ou o deitaram.

Esperava, desesperado, que alguém entrasse sem bater.

Bati palmas para portas que quis ver arrombadas,

supondo tesouros quando não preservavam nada.

Muitas me mandaram calar as ideias descabidas

ou bater na porta da esquina.

Fui e bati

e ali havia uma placa de aluga-se ou você está sendo filmada.

De algumas, das profundezas me gritaram:

trouxeste a chave?

Ou ela está debaixo do capacho.

Mas nunca encontrei esses diachos.

Bati e enquanto eu batia

havia outras portas que se abriam,

mas eu já tinha partido.

Bati e nos batíamos e não víamos.

Ou eu quisera passar por estreitos corredores

de onde todos saíam, sofredores, aflitos.

Muitas sempre estiveram para mim escancaradas

e eu as transpusera, desapercebida,

porque a gana de bater era o sentido da estrada,

ou porque havia escuridão ou luz demasiada

que ofusca a visão

daqueles que batem e daqueles que abrem.

Batia enquanto não sabia que não são

a única fresta por onde entrar

ou que estar aqui é o mesmo

de estar lá.

 

Para ouvir o texto, clique aqui:
podcast

 

23-12-2015

O trem da memória

treem.jpg

Aquele tempo
em que tudo que é sólido se desmancha
já foi embora.
Touchscreen uma face e já passa e já rola.
Hoje tudo o que é líquido
nem mouse se derrama e evapora.
Que tipo de lunática sou,
para que em pleno culto ao transitório,
ao bezerro de ouro do agora,
aos aplicativos de encontros descomplicados
e instantâneos,
aliás, aos aplicativos de aplicações utilitárias
que não arquivam nada,
nem dèja vu, nem sonhos,
em que todo hoje já foi ontem,
e já era o amanhã,
eu queira obstinadamente promover
um resgate da memória,
eu deseje plantar raízes em nuvens?
Talvez eu esteja a capinar os ares,
enquanto perco o bonde da história.
Mas o trem, o trem, o trem,
o diacho do trem
teima em retornar à mesma estação!
Embarcar é um boa
maneira de aferrar-se ao chão
de estrelas e maravilhas
quando tudo esboroa
e descarrilha.
Segura nas mãos
dos teus antepassados
e embarca!

Para ouvir o poema, clique aqui:
podcast