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11-03-2012

La non-lectrice

a_leitora.jpg

 Antes eu ouvia apenas

as vozes do aquém e do além.
Lia somente

as palavras impressas em tinta,
que me pareciam querer bem,
as que aceitavam ser espremidas
entre os limites

das margens e das linhas.
Hoje, ouço principalmente os silêncios,
que são por onde melhor se comunica.
Leio na branca página
o que se diz no invisível.
Se não está escrito,
não quer dizer que exista ou não exista
ou que queira ou não queira ser dito.

(Bem-me-quer, mal-me-quer, não-me-quer.

As pétalas e folhas ao vento

são apenas um desfolhado

coração de mulher.)

Mas o grande perigo ou engano

ou martírio

tanto das palavras

quanto dos silêncios e vazios

é que são todos e ambos

ambíguos e polissêmicos,

e sujeitos e objetos

de nossos excessos

de imaginação,

desvarios,

de nosso desvios

de carência ou interpretação.

Então,

às vezes desejo sofregamente

uma nova condição:

ser uma não-leitora,

e ouvir apenas ruídos

e ver apenas manchas,

não signos.

E seguir não lendo

e não sentindo.

 

 

 

 

21:03 | Permalink | Comentários (0) | Tags: poemas

19-11-2011

Bonança

chuva de canivete.jpg

 

Terá chegado o dia da bonança?

 Depois de tempestades,

 de chuvas torrenciais de sapos

 e até canivetes.

 Diz-me que sim a Esperança,

 mas pode ser apenas mais um teste.

 

A chuva de seres gosmentos

 e objetos cortantes

 é sempre uma espécie

 de Deus Ex-machina,

 para uma tragédia humana

 que não finda.

 E depois na terra devastada

 brotam plantas e coisas lindas.

 

 Mas calma no contentamento,

 pois a trégua

 é apenas uma pausa no tempo,

 no vento

 e no tormento.

 

O drama não acaba

quando termina.

 

Fecham-se as cortinas,

 mas na coxia do teatro

 os atores  chiam

 e vivem ainda

 os seus três tristes atos.

 

 Pode parecer o desfecho,

 mas sabemos no fundo

 que é apenas o começo

 de mais um enredo.

 

Não para

no infortúnio

ou na fortuna

o espetáculo da vida.

 

 

 

08:41 | Permalink | Comentários (0) | Tags: poemas

12-10-2011

Pacote completo

 

familia canguru.jpg

 

Ao ler hoje este texto de Chico Xá, sobre mulheres que já vêm com filhos, http://xicosa.folha.blog.uol.com.br/, lembrei de minhas amigas "canguruzinhas marlindas", como ele mesmo diz.  Resolvi resgatar este meu poema de 2005.  A elas, pois:


Quando a gente ama,
compra o pacote completo:
o bilhete de ida e sem volta,
a ex-sogra,
o mau hálito quando acorda,
o mau humor
o mau amor.

A gente ama,
a gente compra
o pacote com tudo o que vem dentro:
um trem, uma família, um cachorro,
um papagaio, um sofrimento.
O feijão com caruncho,
a pedra...
A gente quase quebra um dente
quando morde.

A gente não pode
comprar uma meia meia,
uma meia sola,
só o seio esquerdo
e deixar na loja
uma só alça
do sutiã meia taça.
Comer só o miolo do pão
e do sonho de valsa;
a laranja e a couve;
e fingir que não houve
nem escravidão, nem fome, nem chicotada,
nem o pé de porco
na feijoada.


O amor não se vende avulso
nem picado,
para um pé atrás,
de um só lado.
Se bem que é bem preciso
começar com o pé direito,
dar ao menos um braço a torcer
e de vez em quando estender
a roupa no arame
e a outra face.

Porque a qualidade e o defeito
são irmãos siameses.
E o cachorro se senta
sobre o próprio rabo.
Bicho de goiaba é goiaba,
exceto para quem está
de barriga lotada.

Quando a gente ama,
não pode escolher
se tem aleijão
ou se é perfeito.
Tem que aceitar a barriga, a remela,
o cabelo de nego,
o presente de grego,
a mão em que sobra ou falta
um dedo,
e que é a pimenta da vida
e que dá tempero à comida.

Não há amor que se vende a granel,
como fiado
só no armazém ao lado.
E se é verdade
que a galinha da vizinha
é sempre mais gostosa e mais gordinha,
é verdade também
que não se faz omelete sem quebrar uns ovos
chocos
e que todo ofício,
mesmo o de você me comer
e de eu comer você
tem seus ossos.