09-04-2012
A difícil despedida nos tempos da Web
Texto meu gentilmente publicado pelos colegas em A Redação:
http://aredacao.com.br/artigo.php?noticias=10849
Como realmente sepultar um ex-amor nesse mundo em que todos permanecem vivos e bem à vista? Como dizer um adeus definitivo nesse universo em que todas as pessoas deixam o tempo todo pistas de si mesmas e de seus precários amores no grande aquário?
22:57 | Permalink | Comentários (1) | Tags: "histórias agudas e crônicas"
07-03-2012
O ornitorrinco albino da Malásia ( Ou simplesmente vida de mãe)
Às 6h30 da matina, seu despertador personalizado te acorda com seu toque especialíssimo:
"Mamãe, o solzinho já saiu a casinha dele. Vamos levantar."
E você é que ensinou a história do bendito solzinho que sai de casa. Você que queria tanto dormir só uns dez minutinhos a mais.
Você prepara a mamadeira e o café. Você tenta se arrumar enquanto ele insiste para que você brinque com ele de trenzinho. Você explica umas mil vezes que tem que trabalhar e não pode brincar. Você aguenta umas dez birras e os gestos dramáticos. Ele se atira emburrado na cama e no sofá, quando não se tranca no banheiro. Você continua sem saber de onde ele herdou tanto talento para a dramaturgia.
Você finalmente sai e trabalha e trabalha. Às 11h50, seu chefe te chama na sala para uma reunião. Você e os outros convidados esperam que ele conclua uma importante ligação, que não se conclui. Já é meio dia e você precisa levar seu filho à escola às 13h15. Tempo de trânsito até em casa pode chegar até 45 minutos. Você decide fugir, mesmo que o chefe fique uma arara e você leve uma bronca depois. Tudo bem, como se diz na roça, você já está ficando com o couro grosso.
Você foge e de repente se lembra que ainda não o ajudou a fazer a tarefinha da escola. E a tarefa, encomendada no final no dia anterior, inclui pregar uma fotografia de sua grande pequena família. Você percebe que das 5.832 fotos que você tirou de seu filho desde que ele nasceu, de apenas umas 5 ou 6 você consta, e que nenhuma delas você imprimiu.
Você corre a encontrá-la e imprimi-la e depois corre a chegar em casa e corre a pregar a tal foto e engolir a comida Prazo recorde. Você fez tudo isso em uma hora e 15 minutos. E seu filho está entregue na escola e você está pronta para o novo desafio escolar, que provavelmente consiste em arranjar algo bem comum, como uma fantasia de um ornitorrinco albino da Malásia que ele deverá vestir no próximo teatrinho da próxima festinha. As escolas atualmente parece que realizam todo o tempo uma grande gincana em que o desafio é a cada dia atender a uma nova e extravagante exigência
Aliás, por falar em festinha, você ainda se lembra do teatro de fim de ano, em que você gastou R$ 80 reais com uma fantasia de duende verde. Sim, ele aceitou vestir a fantasia, mas não aceitou pisar no palco, ele e mais uma única criança em toda a escola. Para sua alegria de mãe.
E falando ainda em escolinha, na sala de seu filho, há 12 crianças, mas pelo menos umas 20 festas de aniversário ao longo do ano, o que leva você a desconfiar de que algumas mães comemoram o aniversário de seus filhos mais de uma vez ao ano ou que têm gêmeos, pagando a escola para apenas um e alternando a freqüência. E quando há festa, logo há que comprar presente. E você só é avisada disso no último minuto do segundo tempo, ou seja, às 18h45 quando você é uma das últimas mães a chegar para buscar seu rebento.
E no entanto, você não se arrepende de sua escolha um só momento, pois todo dia, ao acordar e te beijar e te abraçar, ele te lembra que “o solzinho já saiu da casinha dele”.
15:38 | Permalink | Comentários (0) | Tags: "histórias agudas e crônicas", vida de mãe, maternidade, filhos
10-02-2012
A planta da casa
Assim que precipitadamente alfabetizada na escolinha da dona Perpétua em Pontalina – que nome e que figura nada encantadora a da primeira professora de uma criança de 5 anos – aprendi algo que me fez descobrir precocemente meu talento para a arquitetura. A primeira de minhas possíveis vocações. Foi certamente no livro de Estudos Sociais. Naquele tempo tínhamos aulas de Educação Moral e Cívica, Educação Artística e um monte de outras disciplinas cujos nomes já não se usam mais. Pois li em um desses livros e aprendi que “a primeira coisa que se deve fazer ao construir uma casa é a planta da casa.”
Esse conhecimento marcou profundamente meu espírito. Assim, como boa e aterrorizada aluna que fui desde o princípio, impus-me o rigoroso dever de sempre, quando começava o desenho de uma casinha no papel, por obrigação ou divertimento, desenhar uma planta. E não era uma planta qualquer, era uma dessas plantas tipo folhagem. Ficava intrigada – é certo – e por muito tempo me questionei por que tinha que ser uma planta e não várias plantas. Mas logo me apaziguava com a ideia de que casas sem plantas eram lugares tristes, desérticos. Era mesmo natural que alguém, quando fosse habitar um lugar, antes povoasse o ambiente de verde, que esparramasse folhagens, árvores, afinal, outra coisa que aprendi nesses primeiros livros era que “árvores são muito boas porque dão sombra, flores e frutos.”
Falo sério. Não é chacota. Durante muito tempo da infância, sei lá quanto, fui fiel a esse ensinamento. Desenhava sempre a primeira planta, como quem afina o lápis e o instrumento, depois esboçava casa e lá ia esparramando um sem fim de folhagens, flores e árvores em torno.
Também não sei precisar quando se desfez esse meu engano, travestido de dever. Num dado momento, percebi que planta podia ser algo mais que um vegetal, mas um conjunto de traços com os quais só os iniciados, uma privilegiada casta chamada de arquitetos, definiam os espaços, a sala, a cozinha, os quartos de uma casa que ainda seria construída. A revelação, porém, se transformou logo num novo fascínio, pois eu ficava novamente intrigada ao tentar imaginar como ficariam aquelas linhas depois de erguidas em paredes. Não foi também menor o meu entusiasmo quando, admirando as pequenas plantas dos folhetos que vendem casas e apartamentos, procurava entender onde afinal seria a entrada, onde seriam colocados o sofá, a cama ou a mesa de jantar. Um mundo minúsculo de possibilidades. Um universo para ser habitado por pequenas bonecas de papel.
Paralelamente a esse encantamento, o tempo foi me revelando que, além de uma enorme dificuldade para interpretar “plantas” – virava e revirava os folhetos e a cabeça em busca de alguma lógica – (eu e meus problemas de percepção espacial que até hoje perduram ), eu nascera dotada de duas mãos esquerdas. Sim, duas mãos esquerdas. Embora destra, sempre fui uma canhestra. Meus desenhos eram péssimos. Minha caligrafia era péssima. Eu sempre levava bronca de minha mãe quando tinha que desenhar mapas para as aulas de Geografia. Minha relação com a régua e o compasso sempre foi marcada por um grande descompasso nas aulas de Geometria.
Uma hora me acabo - Não sei como não fui reprovada e sobrevivi a tudo isso. Mas o fato é que a descoberta da planta e de seus múltiplos sentidos foi substituindo meu interesse pelo fascinante mundo da arquitetura. As palavras foram me seduzindo. As palavras são sempre um terreno muito sedutor e acolhedor para os “gauches”. Drummond que o diga. Desajeitados no mundo, incapazes de construir algo útil com as mãos, nós nos recolhemos a elas, aos livros, à convivência com os seres de papel e verbo.
As palavras então eram polissêmicas, podiam ser manipuladas ora com um, ora com outro sentido. Podiam ser trocadas de lugar, o que lhes alterava profundamente o sentido. E entre elas eu me localizava, não ficava perdida. Era um espaço que eu compreendia e habitava apaziguada. Momentaneamente apaziguada, pois descobri assim que, em vez de vocação para a arquitetura, já que gostava e me arranjava bem com as palavras, era vocacionada para o jornalismo.
E lá fui eu cursar Jornalismo, achando que isso me bastaria para me dar bem nessa área. Novo engano. Novo desapontamento. O jornalismo também não é terreno para a polissemia. No texto jornalístico, as palavras não podem ter múltiplos sentidos, ambiguidades, não podem se prestar a trocadilhos. Deve-se privilegiar a ordem direta, fazer cálculos precisos sobre o número de adjetivos, dispensáveis a maior parte do tempo. As palavras devem ser medidas com régua, números de espaços e caracteres. Não podemos nos dar ao luxo de figuras, firulas e flores. Não podemos dar margens a múltiplas interpretações e viagens poéticas. Devemos ser simples, concisos, objetivos, diretos. Sujeitei-me. Já era tarde para descobrir e me enganar e me desenganar com uma nova vocação.
Felizmente, há sempre à disposição da gente uma folha ou uma tela em branco onde a gente é que decide como e com que começar o desenho. Cumpro rigorosamente meu dever todos os dias, uso as palavras com parcimônia, meço, desidrato , disseco, muito atenta com a arquitetura das frases – elas não podem desabar em dubiedades e questionamentos. Depois ou durante os intervalos dessa labuta, me compartimento. Entrego-me. Respiro. Escrevo, livre, sem normas, sem freios, uma profusão de palavras: planta, casa , árvore, que venham, que virem uma cidade, uma floresta, que edifiquem e que desabem. Tem uma outra vocação escondida aqui, eu suspeito, mas deixe, daqui a pouco, fica pra mais tarde. Sou apenas um esboço, uma planta, um projeto provisoriamente abandonado. Um hora me construo. Uma hora me acabo.
21:55 | Permalink | Comentários (0) | Tags: "histórias agudas e crônicas", jornalismo, literatura