01-01-2012
Sobre adeus, reis postos, nus e mortos
O vestido
que eu havia comprado
na esperança de passar esta noite
e talvez uma vida
ao teu lado
jaz aqui vivo à espera,
de um corpo para vesti-lo
e um olhar para amá-lo.
Mas meu amor
por ti,
de flores, rendado,
encontra-se completamente morto,
velado e enterrado.
Eu ainda te terei dias e anos por perto,
mas será como se vestisses
o manto
do rei destronado.
Isto foi posto: o rei está morto.
O amor está morto.
Tirei de sobre teus ombros o peso e a beleza
que paixão e fantasia enxergam.
Voltarás a ser o que sempre foste:
um rei nu e feioso,
rodeado por uma multidão cega.
À meia noite quando estouram os fogos,
pela décima primeira vez me renegas.
À meia noite terás menos a mim
e mais de ti e de toda ela,
e o teu cetro
perdido e ereto.
Em 2011 te deixo
e nunca mais os meus beijos.
Ficas neste ano que passa.
O vento não fará voltar as folhas
das tuas escolhas
e do calendário.
És passado.
08:34 | Permalink | Comentários (1) | Tags: escritos para uso pessoal e doméstico, réveillon, 2011, 2012
04-11-2011
Sapato Furado
Deixe que eu seja o sapato furado
para o seu pé aleijado.
Já sei a quantidade de calo
que você ganhou
procurando o número exato.
Uma hora era o dedão que rasgava
o bico da bota.
Outra, o calcanhar rachado
que pisava fora
da chinela que deformava
e soltavam as tiras.
O número nunca tinha.
Seu pé nunca cabia.
Te faziam usar palmilha,
consultar ortopedista, o psicanalista.
Ou a fôrma era pequena demais,
ou tão grande que você nadava.
Os vendedores te convenciam
a comprar um número a menos.
E só eu sei como você sofria:
um rei momo, sem pipocas,
entalado na poltrona do cinema.
Calçar bem custa caro,
ainda mais da última coleção.
Você que, como eu,
não é nenhum top de linha,
em vez de pisar boate
ou loja de grife,
freqüentava ponta de estoque
e liquidação.
Suas chances então só diminuíam.
Contentava-se com o modelo que havia.
E como ficava feio
sua calça vermelha
com o mocassim verde-limão.
Foi aí que um dia
você passava pela vitrine e não me via.
Também eu não estava lá.
Sou de uma fabriqueta,
de fundo de quintal.
Me fizeram de encomenda,
mas o dono nunca foi buscar.
Meu artigo é bem macio,
capaz de esticar e de encolher.
Tenho, é verdade,
um pequeno defeito,
tão pequeno, que se não olhar bem,
nem dá pra ver.
Se você me quiser,
é só ajeitar o cadarço
que vale também como um sinal
e pode até virar argola.
Amarre-o no seu pé aleijado
e me encontre lugar tal,
nesse dia e nessa hora.
Decida com cuidado.
Mas não se esqueça:
quem me fez,
jogou a fôrma fora.
P.S: Poema da série "Escritos para uso pessoal e doméstico" 2005
19:22 | Permalink | Comentários (0) | Tags: escritos para uso pessoal e doméstico
28-08-2011
Caça
Eu nunca serei uma caça morta.
Infeliz do caçador que descansar a arma.
Verá seu rosto refletido numa poça
de sangue, decepção e mágoa.
Eu terei me esquivado do primeiro golpe.
Eu terei fugido como uma corsa foge.
A bala terá vazado a minha carne flácida
e ficado encravada nos meus ossos fortes.
Quando achar que me encontra
repousada nos seus braços,
verá que sou a sombra
que se dissipa ao longe.
Quando achar que me exibe
como um troféu de esporte,
na parede urso,
tigre,
gata,
alce,
nada encontrará além de um rombo.
Da série "Escritos para uso pessoal e doméstico", 2005.
21:16 | Permalink | Comentários (1) | Tags: escritos para uso pessoal e doméstico