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04-11-2011

Sapato Furado

escritos para uso pessoal e doméstico

Deixe que eu seja o sapato furado
para o seu pé aleijado.
Já sei a quantidade de calo
que você ganhou
procurando o número exato.
Uma hora era o dedão que rasgava
o bico da bota.
Outra, o calcanhar rachado
que pisava fora
da chinela que deformava
e soltavam as tiras.

O número nunca tinha.
Seu pé nunca cabia.
Te faziam usar palmilha,
consultar ortopedista, o psicanalista.
Ou a fôrma era pequena demais,
ou tão grande que você nadava.

Os vendedores te convenciam
a comprar um número a menos.
E só eu sei como você sofria:
um rei momo, sem pipocas,
entalado na poltrona do cinema.

Calçar bem custa caro,
ainda mais da última coleção.
Você que, como eu,
não é nenhum top de linha,
em vez de pisar boate
ou loja de grife,
freqüentava ponta de estoque
e liquidação.

Suas chances então só diminuíam.
Contentava-se com o modelo que havia.
E como ficava feio
sua calça vermelha
com o mocassim verde-limão.

Foi aí que um dia
você passava pela vitrine e não me via.
Também eu não estava lá.
Sou de uma fabriqueta,
de fundo de quintal.
Me fizeram de encomenda,
mas o dono nunca foi buscar.

Meu artigo é bem macio,
capaz de esticar e de encolher.
Tenho, é verdade,
um pequeno defeito,
tão pequeno, que se não olhar bem,
nem dá pra ver.

Se você me quiser,
é só ajeitar o cadarço
que vale também como um sinal
e pode até virar argola.
Amarre-o no seu pé aleijado
e me encontre lugar tal,
nesse dia e nessa hora.
Decida com cuidado.
Mas não se esqueça:
quem me fez,
jogou a fôrma fora.

P.S: Poema da série "Escritos para uso pessoal e doméstico" 2005

25-10-2011

Goiânia, uma cidade carente de lembrar

 

mauricinho_hippie_d.jpg


Acordei com ressaca de brincar. Acordei com ressaca de tanto lembrar. Acordei sabendo que apesar das queixas, dos estranhamentos próprios de quem se debate no difícil convívio cotidiano, goianienses amam, amamos a cidade onde vivemos. Faltam-nos talvez a oportunidade, o pretexto, a primeira palavra para puxar o fio de um amor que sabemos guardado, enrolado no novelo anestesiante da rotina. E talvez um modo, para que depois de desenrolado, esse fio componha uma bonita trama e permaneça.

Ontem, 24 de outubro, quando se comemoravam os 78 anos de Goiânia,  o poeta Marcos Caiado puxou esse fio. Começou uma brincadeira  no twitter, uma espécie de enquete para que as pessoas assinalassem a alternativa que mais se associasse a Goiânia: ( )Mauricinho Hippie ( )Iris Rezende ( )Star's Chic ( ) Piquiras      ( )Pit dog ( )Estádio Serra Dourada (  )Música sertaneja ( )Pecuária. Alternativas um pouco pejorativas talvez. Mas logo o tom mudou, pois seus seguidores e ele próprio começaram a escrever nomes de locais na cidade que marcaram sua infância, juventude, época de estudante; nomes de bares, escolas, sorveterias, lojas, muitos dos quais já não existem.

 O que me encantou nessa brincadeira à qual logo aderi, contribuindo também com minhas reminiscências urbanas, foi a fuga ao clichê que caracteriza essas datas comemorativas, às saudações e elogios vazios. Assim, despretensiosa e naturalmente, um dia que passaria em branco ou no colorido insípido dos discursos oficiais, acabou se convertendo em um dia de lúdico encontro. Encontro de gerações, confrontação de memórias. A tag #Goiania Memories logo alcançou o primeiro lugar entre os tópicos mais comentados no Brasil.

 E foi assim que pudemos rever a Goiânia que um dia conhecemos, a nossa cidade afetiva, a Goiânia que ficou lá pra trás na nossa infância, mais jovem, de 20, 30, até 40 anos atrás, talvez mais ingênua, mais terna, menos violenta e, claro, menor, menos populosa, que tinha estabelecimentos comerciais com nomes  algo poéticos: uma sorveteria denominada Fonte do Paladar, um programa de TV com um apresentador  chamado Coronel Hipopótamo,  um bar Menestrel, um restaurante Dona Beija. Repentinamente, montamos um mosaico-maquete imaginário e nostálgico da cidade, como se construíssemos ou reconstruíssemos, se não nosso ideal, aquilo que nos foi mais caro, aquilo que permanece em nossa memória a despeito de todo o tempo e contratempos.

 Algumas pessoas tentaram politizar ou destacar os aspectos negativos da cidade, os acontecimentos tristes que marcaram sua história, mas essas vozes não prevaleceram. Prevaleceu o aspecto lúdico, prevaleceram as risadas diante das lembranças de hábitos curiosos, inadequados ou esdrúxulos, como o tempo em que uns playboys davam cavalo-de-pau na Praça Tamandaré, enquanto outros mostravam a bunda pela janela do carro.

 Surpreendeu-me o poder agregador desse movimento de puxar o fio da memória. Pessoas desconhecidas, ao reconhecerem que compartilhavam a mesma experiência, que frequentaram os mesmos locais, estudaram com os mesmos professores, deixavam transparecer uma sensação de identidade, de comunhão, de pertencimento. Notava-se o olhar meio perplexo dos bens mais jovens ou que vivem aqui há pouco tempo e não viram Goiânia crescer, se transformar, envelhecer. Ao falarmos de lugares, de hábitos que já não existem, falamos também de nós crianças, de nós adolescentes, de nós  estudantes.

 Esse movimento no twitter, como certamente outros movimentos igualmente instantâneos e fugazes, já foi e está sendo analisado por teóricos da comunicação, por professores universitários. Certamente vão tentar compreender o que leva as pessoas a elegerem momentaneamente um tema, vão especular sobre a possibilidade de que algo, uma reflexão, uma semente de mudança permaneça depois que passa a onda. Publicitários, políticos, marqueteiros estão de olho no potencial dessa rede social como ferramenta de persuasão e querem identificar justamente como mobilizar as pessoas para suas próprias causas.  

 Mas a conclusão que me atrevo a tirar é que as pessoas estão carentes de lembrar juntas, de um lugar (real ou virtual) onde possam se ver e expressar, onde possam perceber a cidade que integram e  que são, já que uma cidade não é simplesmente a soma de lugares, de problemas, mas de gente e seus afetos, de gente e suas ideias.

 Talvez a arte e só a arte possa ser esse tal lugar.  Talvez só ela dê forma e permanência ao fio da memória e da identidade que nos escapa. Assim, para finalizar, retomo um dos primeiros tweets de Marcos Caiado, quando ele começou a brincadeira. Ele bem observou que Goiânia, em seus 78 anos, não tem sequer um acervo de arte pública. Enquanto isso – lembrou ele - vão-se financiando Leonardo e Cow Parade. Desse jeito, “nessa cultura de eventos, veremos só um museu de ventos”.

 

 

 

12-10-2011

Pacote completo

 

familia canguru.jpg

 

Ao ler hoje este texto de Chico Xá, sobre mulheres que já vêm com filhos, http://xicosa.folha.blog.uol.com.br/, lembrei de minhas amigas "canguruzinhas marlindas", como ele mesmo diz.  Resolvi resgatar este meu poema de 2005.  A elas, pois:


Quando a gente ama,
compra o pacote completo:
o bilhete de ida e sem volta,
a ex-sogra,
o mau hálito quando acorda,
o mau humor
o mau amor.

A gente ama,
a gente compra
o pacote com tudo o que vem dentro:
um trem, uma família, um cachorro,
um papagaio, um sofrimento.
O feijão com caruncho,
a pedra...
A gente quase quebra um dente
quando morde.

A gente não pode
comprar uma meia meia,
uma meia sola,
só o seio esquerdo
e deixar na loja
uma só alça
do sutiã meia taça.
Comer só o miolo do pão
e do sonho de valsa;
a laranja e a couve;
e fingir que não houve
nem escravidão, nem fome, nem chicotada,
nem o pé de porco
na feijoada.


O amor não se vende avulso
nem picado,
para um pé atrás,
de um só lado.
Se bem que é bem preciso
começar com o pé direito,
dar ao menos um braço a torcer
e de vez em quando estender
a roupa no arame
e a outra face.

Porque a qualidade e o defeito
são irmãos siameses.
E o cachorro se senta
sobre o próprio rabo.
Bicho de goiaba é goiaba,
exceto para quem está
de barriga lotada.

Quando a gente ama,
não pode escolher
se tem aleijão
ou se é perfeito.
Tem que aceitar a barriga, a remela,
o cabelo de nego,
o presente de grego,
a mão em que sobra ou falta
um dedo,
e que é a pimenta da vida
e que dá tempero à comida.

Não há amor que se vende a granel,
como fiado
só no armazém ao lado.
E se é verdade
que a galinha da vizinha
é sempre mais gostosa e mais gordinha,
é verdade também
que não se faz omelete sem quebrar uns ovos
chocos
e que todo ofício,
mesmo o de você me comer
e de eu comer você
tem seus ossos.