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02-09-2009

FOMOS DESFEITOS UM PELO OUTRO

 

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Conheceram-se em um desses roteiros de turismo de aventura. Ricardo desejava realmente aventura, no que a palavra significa de risco, adrenalina. Já Leila dava outro sentido ao mesmo termo. Fugia de aventuras, ou melhor, queria um compromisso sério. Insatisfeita com a pouca oferta no mercado recessivo do amor, leu em alguma revista feminina ou ouviu de uma amiga, dessas efusivas que nunca ficam sem namorado – para quem está sempre “it´s raining men, aleluia!” – , que, dadas as extremas condições de competitividade, era possível e necessário cavar seu homem no fundo das cavernas, pescá-lo na profundidade dos rios, laçá-lo no alto das árvores, que uma forma eficiente de conhecer exemplares interessantes da espécie era dedicar-se a um tipo qualquer de hobby, a uma atividade em que os homens são maioria.

Foi assim que Leila se inscreveu em curso de mergulho. A primeira experiência seria mergulho em água doce. Embarcou com um grupo previamente organizado por uma agência de turismo para um lugar paradisíaco onde iria acampar, caminhar, por em prática as habilidades recém-adquiridas. Ali estava Ricardo, estressado com a vida nas grandes cidades, de tal forma que todos os anos incluía em seu roteiro de viagens o tal do contato direto com a natureza.

Durante toda a viagem, Leila falou com entusiasmo da nova experiência, mostrou-se interessadíssima quando ele contou de suas aventuras anteriores, do estilo de vida saudável de Ricardo, que só consumia produtos naturais,  não fumava, não bebia álcool, exceto vinho de vez em quando, de boa procedência. Ele apreciou também a aparência natural de Leila, suas batas soltas, seus cabelos longos e cacheados, sem tinturas e alisamentos artificiais tão usados por suas colegas de trabalho, engessadas com quilos de maquiagem e terninhos estreitos e opressores.

Embora não fosse adepta do visual cara lavada e acendesse um cigarro na brasa do outro, Leila bem que considerava a possibilidade de adotar um estilo de vida mais simples, com hábitos mais saudáveis e menos produtos químicos na pele e nos cabelos. Embora ele não apreciasse muito cerveja ou comidas gordurosas, eventualmente poderia acompanhá-la nos bares, para os encontros regulares com os amigos, na picanha e na lasanha dos sábados e domingos.

Quando retornaram à cidade, estavam profundamente enredados no espírito e na pele um do outro. Todos os finais de semana viajavam para algum lugar próximo, frequentavam cachoeiras, trilhas e quanto mais houvesse de natural e campestre. Casaram-se após seis meses de namoro.

O primeiro ano de casamento foi de afinação perfeita. Mas Leila, que não vivia sem tinturas e escovas alisantes para os fios, confessou que se aborrecia com aquelas viagens todos os finais de semana. Revelou a vontade de ficar na cidade mesmo. Falou de seu aborrecimento, que não suportava a combinação nefasta de sol, mosquitos e água, que estragava sua pele e arrepiava sua bem cuidada cabeleira. Ricardo, que neste meio tempo, acompanhando o cardápio da mulher, engordara e ganhara uma saliente barriguinha de chope, aceitou o fim das viagens, desde que ela abandonasse o cigarro e portanto as farras com os amigos. Passaram a permanecer os finais de semana em casa, quietos, ela suspirando uma fumaça invisível, ele escalando garrafas de uísque. Haviam assinado o contrato renunciando a si mesmos.

Esta foi a “crônica de um amor louco”. “Foram desfeitos um pelo outro”. Frases poéticas que tomei emprestadas ao poeta Marcos Caiado. Apenas o início de uma história fictícia ou um desfecho que se repete todos os dias.

22-07-2009

Agora, depois, além

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Se para além dos lençóis que se revolvem, de amor, insônia, cólera, pudéssemos prever como as coisas no futuro se resolvem, quantas lágrimas pouparíamos. Quanto menos desperdício de dentes rangentes, intrigas e gemidos. Como costumam dizer os espíritas, se pudéssemos perceber como é pequena uma existência humana em face da eternidade que nos fita, ou mesmo como passam rapidamente sofrimentos, meses, anos, diante da enormidade de uma vida.

Leonel amou Lígia no clímax adolescência, secreções e intumescências. Prometeram-se futuro dourado, sem saber que o futuro é só um horizonte escuro, iluminado lá no fundo, comumente, por uma luz surpreendente, com um desenho inesperado. Batizaram os filhos que sequer tinham nascido. O primogênito teria o nome de Ênio. Mas Lígia foi estudar em outra cidade, depois em outro continente e assim se perderam, em espaço, desejo e tempo.

Como cantava Drummond em sua Quadrilha: “João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/que não amava ninguém. /João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história.”

Leonel se casou com Márcia, que caiu na história de paraquedas pouco mais tarde. Batizaram de Ênio seu primeiro filho. Lígia não se fez de rogada, também deu esse nome ao seu segundo rebento, fruto do casamento com um holandês com que vive na Dinamarca.

Só o tempo nos dá essa lucidez ou sabedoria, ou senso triste de realidade. Quando muito jovens, somos por demais líricos ou dramáticos. A experiência vai nos amaciando em épicos. Achamos que o primeiro amor é o maior, o único, e o último e definitivo. Mas conforme a fila vai andando – e ela anda inexoravelmente –, as folhas das árvores a cair e se repor em sucessivos, mas não permanentes outonos, notamos que o maior amor é o último mesmo, que enquanto estejamos vivos, podemos ser surpreendidos pelo inopinado.

Madalena foi a primeira namoradinha do pai de Ricardo. O namorico não deu em nada. Depois amou o filho de modo desregrado. A família se opôs ao romance, escandalizada, como se visse ali algo de incestuoso, para além da diferença de idade. Ricardo se casou com uma moça precocemente grávida. Teve um menino: Rodrigo. E Madalena, conservando todo o frescor e graça , como se só de amor e formol se alimentasse, foi também o alvo do grande amor de Rodrigo.

Novo escândalo na família. Lá vinha aquela devoradora antiga. Gerações por sua cama passariam? Mas o inesperado os esperava na esquina: Madalena e Rodrigo geraram um filho. Anos passados, Robertinho é a maior alegria do avô e do bisavô, antigos e esquecidos namorados. Quem se lembra mais daquilo? As paixões se apaziguaram nas dobras rugosas da carne. Todas as desavenças vividas parecem hoje tão sem sentido. Mas se naquela época alguém vindo do futuro lhes narrasse a cena de todos sentados, pacíficos, à mesa para o almoço de domingo, chamar-lhe-iam alienado.

Pode ocorrer que um dia, os dois Ênios, filhos de amores desencontrados, venham defrontar-se disputando a mesma mulher, ou se tornem cunhados, ou companheiros apaixonados. Pode ser que essa história não tenha assim um desfecho novelesco, que não se esbarrem jamais nesse mundo imenso ou tão estreito quanto um beco. Tudo pode ser. Basta ver o tempo passar para crer.

16-07-2009

Os canhotos desse mundo

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Antigamente, havia o estranho costume de se bater na mão do menino que teimava em segurar a colher ou o lápis com a mão esquerda. Ou pior: professores, munidos de palmatória e outras crueldades vexatórias, amarravam a mão do coitado, porque o canhoto, o canhestro, o sinistro era visto como demoníaco, o gesto como a manifestação do maldito. Os costumes mudaram, a ciência iluminou e mostrou que os canhotos são seres até mais hábeis, porque um outro hemisfério do cérebro comanda os seus hábitos.

Mas até hoje continuamos maltratando e castigando os canhotos desse mundo. É o que fazemos quando não aceitamos os diferentes, quando nós mesmos não nos respeitamos em nossas inclinações e vocações, quando nos obrigamos a ser algo que não somos, a desempenhar funções para as quais não temos talento ou pior até, aquelas que detestamos absolutamente. Ocorreu quando nossos pais quiseram que nós, os filhos, fôssemos iguais: todos médicos ou engenheiros, ou quaisquer profissões que dariam respeito ou dinheiro. E se seguimos seus apelos. Ocorre quando fazemos o mesmo aos nossos filhos, tentamos uniformizá-los, ignorando suas idiossincrasias.

Não sou canhota por biologia. Mas costumo dizer, a exemplo do que ouvi um dia da conhecida fotógrafa Rosary Esteves, que tenho duas mãos esquerdas. Ela assim se definia. E decerto, para compensar tal “canhotismo” duplo, desenvolveu grandes e sensíveis olhos para a beleza. Também assim me considero, com o agravante de que sou destra. Inábil para qualquer atividade manual, sobretudo as mais delicadas. Portanto, um tanto frustrada, ainda mais porque o “canhotismo” no sentido completo não se refere apenas às mãos, mas principalmente aos modos de estar no mundo. Como canhotos, entendam-se desajeitados, desastrados, desengonçados.

Exageros à parte, sou uma destra que escreve como canhota, a mão torta de alfabetizada em escola de roça. Ouvi muitas vezes os comentários jocosos de minha mãe e irmã quando ia servir a comida: lá vem a pá mecânica. E até as queixas dos alunos, quando fui professora, e riscava com minha péssima letra no quadro negro. Eu apagava parte do que escrevia com minha própria palma. Sintomático? Como se dissesse: esqueçam tudo o que escrevo. Ou não aprendam nada do que ensino. Mais grave ainda.

Perdoei-os e procuro me perdoar todos os dias porque encontrei abrigo ou consolo na poesia. O heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, enrolava os pés publicamente nos tapetes das etiquetas. Carlos Drummond de Andrade foi ser “gauche” na vida. No entanto, se pais ou irmãos já não nos tentam endireitar, ou se tentam, mas perdidos de esperanças, se já estamos calejados ou desenvolvemos providenciais ouvidos moucos, nós mesmos nos encarregamos de agir como os professores cruéis.

Ficou ali no nosso inconsciente a obrigação latente de não ser diferente. Nos penitenciamos por não ser aquela pessoa direita, certinha, que faz tudo bonitinho, bem-sucedida, bem ajustada. Cá bem dentro conservamos nossa mão esquerda amarrada, moída, roxa de pancada.