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18-06-2009

BLOGAGENS

sisifo.jpgOs trabalhos domésticos são nosso castigo de Sísifo.

Sísifo é um personagem da mitologia grega, condenado por toda a eternidade  a rolar uma grande pedra com suas mãos até o cume de uma montanha. Toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo.

Síntese do esforço inútil, louça que se multiplica na pia da cozinha,  casa que não se varre sozinha, refeições a preparar todos os dias...

02-06-2009

Árvore de beira de estrada

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Durante muito tempo guardei o sentimento de que eu era como uma árvore de beira de estrada. Que assistia, inerte, passarem tropas e boiadas, carros velozes, os melhores amigos que sempre seguiam para longe, tão sedentos quanto eu de caminhadas. Eu plantada ali, vergando ao encanto dos ventos, empoeirada. Não sei por qual motivo – eu esboçava gestos de partir, eu farfalhava os galhos – mas algo maior do que o meu desejo declarado de mudar me retinha, e aprofundava os meus vínculos, como raiz obstinada à procura de água. E a poeira sobre a minha pele ia formando grossas camadas.

Essa questão ainda não está resolvida – não devo mentir. Ainda me repreendo por não ter conseguido ir embora, de cidade, de estado, de país. De muito guardo essa sensação, inconfessa para tantos e verdadeira para demasiados, de que nasci no oco do mundo. Como diabos vim parar aqui? Sei que fiz escolhas, mas preservo a sensação de que fui escolhida.

Observo pessoas como meu pai, espécie rara de gente, perfeitamente adaptada e integrada ao meio. Ele nasceu na roça, se criou na roça, é feliz ali, onde mora ainda com seus 75 anos. Olho para ele, até hoje, magrinho, cabelo branquíssimo, montado no cavalo, satisfeito. E fico pensando que ele nunca desejou sequer por um segundo ter outra vida senão aquela que sempre teve. Diferentemente de minha mãe, angustiada, insatisfeita, como de resto parecem ser todas as mulheres.

Não que meu pai não tenha suas angústias, mas elas se referem a uma vaca que foi pro brejo e não que atolou na panela, a uma colheita ruim por causa dos humores de São Pedro, às dívidas com os bancos nos financiamentos agrícolas. Mas me parece que nunca passou pela cabeça dele que pudesse ter uma outra vida, em outro canto. Aliás, em sua simplicidade, se atina que cidades, estados e países são diferentes, parece não querer saber ou se importar, por exemplo, que Paris seja uma cidade e França, um país. Tudo é simplesmente o estrangeiro, lugar amplo e abstrato, com gente estranha, costumes um tanto absurdos, que fala uma língua enrolada, verdadeira algaravia. Um lugar longe e muito pior do que aqui.

Arrastado poucas vezes ao litoral, ele demonstrava uma vontade evidente de voltar pra casa. Já pensei em dar a ele um globo terrestre e mostrar: pai, aqui é que eu vou viver, mas concluí que seria uma abstração grande demais para ele. Até porque já acho mesmo que nunca viverei em outro lugar. Posso até ir, passar, viajar, mas não quedarei. Na única ocasião em que cheguei a partir ( ou que"cheguei ao partir)", com uma intenção vaga e angustiada de ficar, fiquei pouco e perdida, e confusa. A gente se leva na mala, dizia um velho amigo. Mala sem alça. Voltei, me trazendo na bagagem, pesada. Felizes os que, como meu pai, não inventam Pasárgadas. Que não fantasiam sair de casa para fugir de si. Mas algo aprendi com essas tentativas de mudança ou fuga: há delícias em ter raízes profundas. Champanhe é bebida gostosinha, mas é bom ser caipirinha.

Pode haver explicação para esse permanecer. Diz-se na cultura popular que onde uma pessoa tem enterrado o seu cotoco de umbigo é ali que irá viver por toda a vida. O meu foi enterrado no meio de um antigo curral, aos pés de uma cruz que ruiu. E o do meu filho – oh, ironia e repetições de família! – entreguei a minha mãe para que o plante nas cercanias da mina d´água que dessedenta a fazenda, ao pé de uma cruz que ainda se sustenta, forte. Há gente que não é feita para ser forasteira. Há cordões e madeiras que não aceitam corte.

 

06-05-2009

Um teto e tudo nosso

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Há pouco reli um livro de Virginia Woolf chamado Um teto todo seu, a transcrição de palestras feitas pela escritora inglesa em 1928 sobre o tema as mulheres e a literatura. Virginia pesquisou sobre o que as mulheres haviam escrito até então e constatou que não surgira ainda no mundo nenhuma grande escritora, que se comparasse a Shakespeare, por exemplo.

Ela notou que se isso não havia ocorrido foi porque as mulheres nunca tinham tido na história condições para tanto: sua educação era limitada, elas eram fadadas ao casamento, não tinham renda suficiente para se manter independentes e se dedicar à literatura. Se tivessem uma renda anual satisfatória, um teto todo seu, lugar para escrever tranquilas, certamente poderiam aprimorar sua arte.

Outra constatação de Virginia dizia respeito ao fato de que as mulheres que escreveram até aquela época não tinham conseguido desenvolver um estilo próprio, feminino, por estarem marcadas pelo ressentimento com a própria condição. Ela fazia um prognóstico: décadas depois isso seria possível, pois as mulheres, em situação de igualdade com os homens, poderiam escrever como mulheres, sem abordar, todo o tempo, o tema das injustiças sofridas. Escreveriam como e sobre mulheres naturalmente, como os homens escrevem sobre homens sem ficar remoendo a questão do gênero.

Ao relê-la, tive certa sensação de culpa, senão de inferioridade, pois, afinal, passados mais de 80 anos, cá estou, como mulher e escritora mui menor que Virginia, a escrever, volta e meia, reclamando de desigualdades e machismos, reeditando um feminismo que muitas vezes parece a mim mesma anacrônico. No entanto, eis como vivem as mulheres envolvidas com qualquer atividade artística ou profissional que exige uma dedicação intensa para se atingir a maestria. Já possuímos um teto todo nosso, a renda mensal. Mas temos, por outro lado, um excesso de atividades e afazeres que tomam todo o nosso tempo. E se sobra algum, estamos de tal forma exaustas pelas múltiplas jornadas, pulverizadas com tantas e tão diversas tarefas, que desanimamos.

Agora, além de trabalhar para manter esse teto, continuamos tendo que cuidar das obrigações domésticas. Se somos mães, temos que zelar dos filhos, que nos ocupar de sua alimentação, higiene, educação. Por mais que encontremos companheiros que dividam conosco essas ocupações, a divisão ainda é na maior parte das vezes desigual. Se nos desocupamos da casa e dos filhos para termos mais tempo para a atividade artística, delegamos essas funções a outras mulheres, que por sua vez, também delegam seus filhos e casas a outras.

Por isso, quando muitas vezes vejo homens escreverem tanto, citarem os muitos livros que lêem, os inúmeros filmes a que assistem, sinto-me um tanto deprimida e me flagro pensando: será que, depois de voltar do trabalho, eles têm que lavar a louça, as roupas? Será que eles têm que preparar as refeições de seus filhos, trocar as fraldas, brincar e passear com eles? Ou será que têm as suas costas pelo menos duas mulheres que fazem todas essas tarefas enquanto eles se dedicam às coisas mais importantes do espírito?

E será que além de fazer tudo isso, eles ainda têm que frequentar a academia, a manicure, o cabeleireiro, para se manter em forma, jovens e atraentes para suas mulheres? Pois não podemos desprezar que hoje a boa aparência se tornou requisito fundamental para as mulheres tanto na vida profissional quanto pessoal, e que mantê-la implica mais uma jornada. Pensando tudo isso, acabo concluindo que para uma mulher produzir uma obra artística de algum valor há que ser solteira e sobretudo rica. Ou seja, as coisas não mudaram muito desde que Virginia proferiu suas palestras.