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16-07-2009

Os canhotos desse mundo

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Antigamente, havia o estranho costume de se bater na mão do menino que teimava em segurar a colher ou o lápis com a mão esquerda. Ou pior: professores, munidos de palmatória e outras crueldades vexatórias, amarravam a mão do coitado, porque o canhoto, o canhestro, o sinistro era visto como demoníaco, o gesto como a manifestação do maldito. Os costumes mudaram, a ciência iluminou e mostrou que os canhotos são seres até mais hábeis, porque um outro hemisfério do cérebro comanda os seus hábitos.

Mas até hoje continuamos maltratando e castigando os canhotos desse mundo. É o que fazemos quando não aceitamos os diferentes, quando nós mesmos não nos respeitamos em nossas inclinações e vocações, quando nos obrigamos a ser algo que não somos, a desempenhar funções para as quais não temos talento ou pior até, aquelas que detestamos absolutamente. Ocorreu quando nossos pais quiseram que nós, os filhos, fôssemos iguais: todos médicos ou engenheiros, ou quaisquer profissões que dariam respeito ou dinheiro. E se seguimos seus apelos. Ocorre quando fazemos o mesmo aos nossos filhos, tentamos uniformizá-los, ignorando suas idiossincrasias.

Não sou canhota por biologia. Mas costumo dizer, a exemplo do que ouvi um dia da conhecida fotógrafa Rosary Esteves, que tenho duas mãos esquerdas. Ela assim se definia. E decerto, para compensar tal “canhotismo” duplo, desenvolveu grandes e sensíveis olhos para a beleza. Também assim me considero, com o agravante de que sou destra. Inábil para qualquer atividade manual, sobretudo as mais delicadas. Portanto, um tanto frustrada, ainda mais porque o “canhotismo” no sentido completo não se refere apenas às mãos, mas principalmente aos modos de estar no mundo. Como canhotos, entendam-se desajeitados, desastrados, desengonçados.

Exageros à parte, sou uma destra que escreve como canhota, a mão torta de alfabetizada em escola de roça. Ouvi muitas vezes os comentários jocosos de minha mãe e irmã quando ia servir a comida: lá vem a pá mecânica. E até as queixas dos alunos, quando fui professora, e riscava com minha péssima letra no quadro negro. Eu apagava parte do que escrevia com minha própria palma. Sintomático? Como se dissesse: esqueçam tudo o que escrevo. Ou não aprendam nada do que ensino. Mais grave ainda.

Perdoei-os e procuro me perdoar todos os dias porque encontrei abrigo ou consolo na poesia. O heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, enrolava os pés publicamente nos tapetes das etiquetas. Carlos Drummond de Andrade foi ser “gauche” na vida. No entanto, se pais ou irmãos já não nos tentam endireitar, ou se tentam, mas perdidos de esperanças, se já estamos calejados ou desenvolvemos providenciais ouvidos moucos, nós mesmos nos encarregamos de agir como os professores cruéis.

Ficou ali no nosso inconsciente a obrigação latente de não ser diferente. Nos penitenciamos por não ser aquela pessoa direita, certinha, que faz tudo bonitinho, bem-sucedida, bem ajustada. Cá bem dentro conservamos nossa mão esquerda amarrada, moída, roxa de pancada.

Comentários

Cássia,
Seus testos continuam ótimos. Adorei essa resenha dos canhotos (eu, ambidestro) e das regras que seguimos (eu, engenheiro). Saber o que seguir ou não seguir não é escolha fácil, embora necessária. Eu, engenheiro, mas que me abstraio sendo um pouco músico, um pouco da escrita, um pouco fotógrafo, um pouco ligado à psicanálise, tudo super amadoristicamente. Até dá medo em falar que escrevo pra você, tão destra nesse ofício. Na fotografia vou seguindo instintos e a Rosary, aqui citada. Fujo e mantenho o engenheiro. Procuro o balde a ser chutado, mas não encontro o balde certo. Seria mesmo bom saber o futuro, mas sou agnóstico demais pra crer nisso.
Ivan.

Escrito por: Ivan Bueno | 16-08-2009

O TEXTO acima foi sem correção. Abstraia que vou tentar desligar meu superego! rs...

Escrito por: Ivan Bueno | 16-08-2009

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