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09-08-2008

Versos esparsos para quando falta tempo na vastidão do espaço

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Em mulher se bate com flor

Tenho uma conhecida
que foi espancada
por um vaso de margaridas.
E outra que levou uma boa sova
com um botão de rosa.
E no Dia Internacional da Mulher,
só não apanha quem não quer.
É um tal de distribuir rosa avulsa.
Um tal de reportagem melosa
na tevê,
com mulher-frentista
de posto de gasolina,
nas ditas profissões masculinas,
passando batonzinho
pra não perder
o charme
e o clichê.
A gente não quer flor
nem rima pobre,
meu amor.
A gente quer cobre,
querida,
que da última vez
que flor encheu barriga,
o resultado foi visto
nove meses depois.

******
Por causa da numerologia
mudou seu nome
de Ana Faria
para Ana Fará
Com dos "rrsssssss"
rosnantes e fricativos
para ficar
mais afirmativa.
E positiva
no velho e bom estilo
Pollyana moça
Pollyana menina.

******
Os mais jovens
aos mais velhos
sempre querem impor:
a aposentadoria do amor.

25-05-2008

O Giocondo

b6173d283643defa4f5123d4c9b924af.jpg Tudo o que eu fizer depois disso será obra menor, capricho de artista. Minha obra-prima já foi escrita. Rima pobre verso manco, romance sem clímax, Personagens planos e líquidos. É tudo assim ínfimo comparado a Fernando, ainda quando recém-chegado, recendendo a pequenino. Passei quase um ano pensando um homem, arquitetando, alimentando, construindo e deu nisso: meu Giocondo, enigmático, sereno, em seu semi-sorriso. Tão perfeito que por pouco não me gabo de que já nasceu acabado e que não precisa ainda de umas lapidadas e mãos de tinta. Porém sei que um filho não é uma obra de carne ou arte emoldurada e pronta, mas uma alma em obra pintando-se, aperfeiçoando-se e abrindo-se para o infinito. Resta-me agora desfazer o principal enigma, maior ainda que o sorriso esfinge de Mona Lisa: achar sabedoria para ajudar a transformar em espírito sólido de homem a esboço corpóreo do menino. Aos sete dias do nascimento de Fernando.

24-01-2008

A barriga maior que o olho

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Sabe aquela sensação de quando a gente é menina, véspera de aniversário e a gente pressente ou imagina ou suspira que o dia seguinte será todo nosso, de que um presente nos espera na esquina, no alto do armário, sob mistério, embrulho e laço, de que naquele dia terão cuidado com a gente de propósito, não nos virão entristecer ou contrariar, e mamãe irá preparar a comida preferida e nem irá reclamar a chinela no nosso bumbum da vida?
Sabe quando é véspera e a gente não dorme, o lençol que devia servir pra cobrir, não cobre, e a manhã nunca demorara tanto pra amanhecer? Sabe? O tempo tinha me feito esquecer o que era a alegria da véspera, a euforia da véspera, a fantasia da véspera, a delícia de acordar num sábado, saber que não há aula ou dever, e começar o dia assistindo a desenho animado na tevê. A maravilha de um caderno novo, limpinho, com todas as páginas tinindo pra ser escritas e pingar ali a primeira saliva de tinta.
Sabe que agora é como me encontro, em sentimento de véspera todos os dias, e a insônia nem é do desconforto da barriga que cresce e pesa? É a mais doce das doces ansiedades, obsessões-compulsivas. Mal conter-se. Mal caber-se você e o outro em si, e manter-se inquieta. Alisar cada fralda e flanela, como se a pele dele já estivesse nela. Ver nos desenhos e bordados a face de um desconhecido que já é amado. Sair pra comprar sapatinhos como pássaro que juntasse gravetos pra formar o ninho.
Sabe? É assim a sensação da espera. É assim ser a própria caixa em que está sendo transportado para o mundo nosso maior e melhor presente, o mais valioso e delicado, aquele por nós fabricado, o presente que é ser gente e que só nos é emprestado por um breve momento, e que irá dar sentido a tudo o que não faz sentido, e que explica por que temos no meio esse olho estranho que nos espreita, a vida inteira, chamado umbigo.
Então toda a inveja que a gente podia ter de ser menino-homem desvanece. Porque nada do seu pênis, carros, cargos, de sua conveniente insensibilidade masculina se iguala ou nos interessa. Porque tudo o que queremos está dentro. Temos afinal a certeza do que realmente importa, os nossos verdadeiros e seletos desejos claramente se mostram. Finalmente, não é mais o olho que é maior que a barriga. Tornou-se maior o ventre, que não serve apenas para dar apetite insaciável e criar lombriga.
A gente, pretensiosa, se sente a primeira molécula de carbono na sopa primeva do oceano. O que é incrivelmente corriqueiro e simples nos parecendo complicadamente raro. Um mero processo biológico-químico que se repete há séculos e, no entanto, como algo assim tão incrível pode sobrevir a mim, um ser tão imperfeito e cético?
Esse amor de espera é mal agüentar-se de vontade de abrir-se. Todavia, é imperioso guardar-se, em segredos e conspirações de células e sentimentos, porque o que tanto esperamos, o que tão pacientemente embrulhamos e desembrulhamos, na verdade, não nos pertence. A maternidade é paradoxalmente um ato de generosidade e egoísmo. Damos ao outro a vida, nos damos a nutri-lo, mas é a nós mesmos que o presenteamos com um cartão de bem vindo!