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10-09-2007

O homem que fumou a bíblia

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Difícil alimentar o vício, principalmente nas pequenas cidades, onde a vida das gentes se nutre de outras vidas. Onde os quintais são cercados por tênues fios de arame farpado ou por muros baixos, facilmente perscrutáveis, e saltáveis por ouvidos e olhos curiosos. Com alpendres, cadeiras e línguas que se integram à paisagem das calçadas. Com praças em que aos sábados e domingos os jovens dão voltas, num antigo trotoir. Com igrejas às quais se comparece para rezar e olhar.
Mais difícil para Júlio, que é sobrinho do padre, que com ele habita a casa paroquial. Tinha morado na cidade grande o pobre, onde habituou a esfumaçar os pulmões e a alma. Mas quando a mãe morreu, não teve senão como mudar-se para a companhia do tio beato. Pouco durou seu estoque de sedas e quando acabou, bem que tentou comprar. De que jeito?! Socialmente, não fumava. Com o que iria justificar a compra de colomy, na padaria todos os dias? Atreveu-se uma só vez e no dia seguinte, até o pipoqueiro da praça comentava.
Restava-lhe então recorrer aos sanduíches nos dois superpovoados pit dogs da rua principal. Mas os proprietários, uns sovinas, ficavam com uma orelha na chapa e um nariz no porta-guardanapos. Faltava só estabelecer uma quota para cada cliente, como faziam com o ketchup e a maionese – apenas dois sachês para cada. E nada de mostarda! Deixava a boca suja para levar pelo menos um par pra casa. E nem para um dia dava.
Excetuadas as imperiosas obrigações e inquietudes do vício, era bom rapaz. Ajudava o tio a preparar a missa. Limpava a sacristia. Não comia as hóstias nem bebia o vinho. Não tanto por falta de vontade. Temia que a boca sangrasse, como aprendeu na primeira eucaristia. Que carência brava! Insônia! Falta de apetite!
Nas tardes, o tio preparava os sermões das missas, da noite e da manhã seguinte. Era criterioso. Não repetia. Lia trechos numa bonita bíblia, inscrições douradas, fita de cetim vermelha como marca-páginas e umas folhas sépias tão finas, que diante dos olhos fascinados do rapaz pareciam desvanecer como fumaça. Interpretava os textos para o sobrinho, catequizava-o, e de quebra ensaiava eloqüente para os fiéis ávidos. Júlio ficava embevecido, hipnotizado, permanecia apenas no invólucro das palavras. E quando o tio terminava, observava bem onde ficara a rubra fita.
O sacerdote ficou satisfeito quando também reparou melhor o sobrinho, dias passados. Havia engordado, tinha um ar meio apalermado, mas sadio. A bíblia, porém, não entendia por qual motivo, emagrecia a olhos vistos. Repentinamente achou-a a leve, mas se consolou com o pensamento de que talvez assim sentisse porque mais leves estivessem os do rebanho e os próprios pecados. Além disso, Júlio tornara-se fonte de alegrias, tal a fé que demonstrava. Deixe que guardo o sagrado livro, tio.
Ainda que não se confessasse, rogava que lhe desse demoradas penitências. Era para pagar adiantado. E como recitava bonito os salmos de todas as missas passadas, como se os tivesse engolido, inalado. Triste é que a bíblia desapareceu um dia. Restou apenas a capa, uma borda chamuscada. O pobre padre perdeu a fé. E Júlio pagou castigo, voltou a ser angustiado e magro.

30-08-2007

Perícia

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Hoje, para expressar-se, é requerida muita perícia, cirúrgica e lingüística. Um caso infeliz de expressão pode redundar em caso de polícia e detenção. Principalmente se tratamos de minorias, tão amplo conceito, criado para combater preconceitos e reparar injustiças. Qualquer um se enquadra na categoria dos humilhados e ofendidos, a ser compensados e protegidos, até frascos e comprimidos. Nós mulheres, por exemplo, somos minoria embora sejamos maioria. Vá entender isso. Atinar, não atino, mas bem que me beneficio. Não interessa se por quota, o importante é passar pela porta. Do Palácio.
Outro dia, moradora de um prédio no Rio se estranhou com o vizinho, que, por acaso era síndico. Entre rusgas e impropérios, xingou o cara de invertido, assim com outros adjetivos que não emprego por pundonor do leitor e sobretudo por temor de processo. Gritou muito bem reforçado que ele transformava em lazer a área de serviço.
A briga foi parar nos tribunais. O juiz, sensível e politicamente correto, deu ganho ao ofendido, afinal, o que se guarda na garagem só ao dono interessa e ele não estava ali pra julgar se isso ou aquilo é preferência ou desvio. Mandou a ofensora desembolsar seiscentos reais. Ela, porém, inconformada, queria provar não estar enganada – não se tratava de calúnia ou difamação, mas de pura verdade – solicitou uma perícia na parte de trás do vizinho. Acabou pagando mais. Oito mil reais. E um mico.
Como o mico não foi comigo, lembrei-me da onda do politicamente correto, que já deu tombos em amigos, cá bem perto. Há certo tempo, um colega jornalista foi surpreendido por um comunicado raivoso pregado nas paredes da assessoria de comunicação onde trabalhávamos. “Fulano, converse comigo sobre isso”! Uma seta pontuda apontava para o título de uma nota que seria enviada aos jornais no dia. Onde se lia: tapete preto. Sentimos, nós, os colegas, um estremecimento de medo.
O chefe sicrano estava fulo da vida. Como um representante legítimo das minorias coloridas, não aceitava aquela expressão pejorativa sobre raça.
“Mas a nota fala sobre o asfalto pretinho e novinho que chega às ruas da cidade. Um tapete de tão liso”.
“Pois, nós, por aqui, não admitimos expressões homofóbicas ou racistas. Preto é uma palavra que tem sempre uma conotação discriminatória e ofensiva. Como a situação está preta! Há algo mais preconceituoso que isso? E o buraco negro? E o gato preto que passa debaixo da escada?!”
O título foi cortado. Uma injustiça datada de séculos foi reparada.
Eu, que não queria pertencer à minoria dos desempregados, enfiei meu pretinho básico no saco e desde então cortei a palavra preto de meus textos e dicionário. Aqui, só a utilizo em intenção crítica.
Falar e escrever hoje em dia é atividade de risco, é operar com precisão a língua, proceder a melindrosas cirurgias. Além de andar com bisturi afiado, tenho uma pinça bem aguçada em meus ouvidos. Ai, se no meio do tráfego, algum porco chauvinista grita: minha tia, vai pilotar fogão! Ah, se não ajeito a minha vida, se não lhe arranco o fígado e um milhão. E cozinho o sutiã na sua cara.

20-08-2007

BLOGAGENS

Perguntinhas que não querem calar.

1 - Castigo de Deus
Por que esses artistas famosos, já consagrados, aceitam gravar comerciais de qualquer tipo de produto? Não acredito que seja simplesmente por dinheiro. Alguns deles já ganham milhões, com seus discos e shows. Por exemplo, há o caso de um famoso cantor da terra, que fazia comerciais para uma financeira, estimulando os velhinhos a se endividar com aqueles malditos empréstimos. O cara já tem uma fortuna. Duvido que precise ganhar mais grana. Onde enfia a tal da responsabildade social? Será que ele não pensa no poder que sua imagem tem sobre as pessoas, que anunciando determinados produtos pode arruinar a vida delas? É por isso que digo, quando vejo certos cantores, principalmente sertanejos, reclamarem dos prejuízos com a pirataria, que isso acontece "por castigo de Deus". Quem mandou encherem os ouvidos da gente com tanta porcaria? E não falo apenas da música.
Há também o caso de um ator aqui da terrinha, que já vive no Rio há algum tempo, mas que volta e meia anda na cidade. Pois está no ar um comercial em que anuncia as vantagens fantásticas de mais um maravilhoso loteamento. Mais um? E esses loteamentos, sabemos bem o que são.

2 - Nossa nudez, nossa desfaçatez.
Por que a Playboy sempre convida para posar nas suas páginas mulheres envolvidas com algum tipo de escândalo? Já aconteceu daquela vez com a fogueteira do Maracanã. Agora, novamente, com a tal da Mônica Veloso, envolvida no escândalo Renan Calheiros. Tudo bem, eu sei, revista de mulher pelada traz sacanagem, não precisa se sujeitar a qualquer regra moral, mexe com o que há de mais interdito na imaginação, com as taras, com as fantasias. E, além disso, só tem compromisso com o próprio lucro.
Mas - ponte que partiu! - dessa vez a peladona está envolvida em um escândalo político. Quem vir a bonita nas revistas vai querer .... vocês sabem o quê, mas a sensação que tive quando fiquei sabendo que ela iria sair na Playboy é que a revista está mandando o Brasil se fuder!
Será que em outros países também ocorre o mesmo? Mulheres envolvidas em escândalos políticos vão parar peladas nas páginas de revistas? A Mônica Lewinsky, que não fez um filho, mas fez muitas outras cositas com o Bill Clinton, que eu saiba, não saiu nua nas revistas dos Estados Unidos. Parece que o que fez foi abrir a sua própria loja de bolsas. O que não deixa de ser simbólico.
A impressão que tenho, portanto, é de que no Brasil, até nossas revistas de sacanagem refletem a sacanagem vigente. Até nossa nudez é um sinal da nossa desfaçatez. Revista pornô não precisa ter moral. A moralidade é plural. Mas a ética, essa, qualquer um, pessoa, revista, instituição, precisa ter. Ética é uma só.