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02-06-2009

Árvore de beira de estrada

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Durante muito tempo guardei o sentimento de que eu era como uma árvore de beira de estrada. Que assistia, inerte, passarem tropas e boiadas, carros velozes, os melhores amigos que sempre seguiam para longe, tão sedentos quanto eu de caminhadas. Eu plantada ali, vergando ao encanto dos ventos, empoeirada. Não sei por qual motivo – eu esboçava gestos de partir, eu farfalhava os galhos – mas algo maior do que o meu desejo declarado de mudar me retinha, e aprofundava os meus vínculos, como raiz obstinada à procura de água. E a poeira sobre a minha pele ia formando grossas camadas.

Essa questão ainda não está resolvida – não devo mentir. Ainda me repreendo por não ter conseguido ir embora, de cidade, de estado, de país. De muito guardo essa sensação, inconfessa para tantos e verdadeira para demasiados, de que nasci no oco do mundo. Como diabos vim parar aqui? Sei que fiz escolhas, mas preservo a sensação de que fui escolhida.

Observo pessoas como meu pai, espécie rara de gente, perfeitamente adaptada e integrada ao meio. Ele nasceu na roça, se criou na roça, é feliz ali, onde mora ainda com seus 75 anos. Olho para ele, até hoje, magrinho, cabelo branquíssimo, montado no cavalo, satisfeito. E fico pensando que ele nunca desejou sequer por um segundo ter outra vida senão aquela que sempre teve. Diferentemente de minha mãe, angustiada, insatisfeita, como de resto parecem ser todas as mulheres.

Não que meu pai não tenha suas angústias, mas elas se referem a uma vaca que foi pro brejo e não que atolou na panela, a uma colheita ruim por causa dos humores de São Pedro, às dívidas com os bancos nos financiamentos agrícolas. Mas me parece que nunca passou pela cabeça dele que pudesse ter uma outra vida, em outro canto. Aliás, em sua simplicidade, se atina que cidades, estados e países são diferentes, parece não querer saber ou se importar, por exemplo, que Paris seja uma cidade e França, um país. Tudo é simplesmente o estrangeiro, lugar amplo e abstrato, com gente estranha, costumes um tanto absurdos, que fala uma língua enrolada, verdadeira algaravia. Um lugar longe e muito pior do que aqui.

Arrastado poucas vezes ao litoral, ele demonstrava uma vontade evidente de voltar pra casa. Já pensei em dar a ele um globo terrestre e mostrar: pai, aqui é que eu vou viver, mas concluí que seria uma abstração grande demais para ele. Até porque já acho mesmo que nunca viverei em outro lugar. Posso até ir, passar, viajar, mas não quedarei. Na única ocasião em que cheguei a partir ( ou que"cheguei ao partir)", com uma intenção vaga e angustiada de ficar, fiquei pouco e perdida, e confusa. A gente se leva na mala, dizia um velho amigo. Mala sem alça. Voltei, me trazendo na bagagem, pesada. Felizes os que, como meu pai, não inventam Pasárgadas. Que não fantasiam sair de casa para fugir de si. Mas algo aprendi com essas tentativas de mudança ou fuga: há delícias em ter raízes profundas. Champanhe é bebida gostosinha, mas é bom ser caipirinha.

Pode haver explicação para esse permanecer. Diz-se na cultura popular que onde uma pessoa tem enterrado o seu cotoco de umbigo é ali que irá viver por toda a vida. O meu foi enterrado no meio de um antigo curral, aos pés de uma cruz que ruiu. E o do meu filho – oh, ironia e repetições de família! – entreguei a minha mãe para que o plante nas cercanias da mina d´água que dessedenta a fazenda, ao pé de uma cruz que ainda se sustenta, forte. Há gente que não é feita para ser forasteira. Há cordões e madeiras que não aceitam corte.

 

Comentários

ahhhh

li no o popular mais cedo. hehehe


abraço!

Escrito por: renato | 04-06-2009

Olá Cássia,
gostei demais do texto. aliás, seus texto são sempre "existencialistas" e intrigantes.

O velho Pierre tb. gosta muito dos seus textos e manda um abraço.

Quando tiver um tempo ligue para ele: 3225 5244 (ele vai ficar feliz!).

Um abraço,

Lisandro

Escrito por: Lisandro | 06-06-2009

Cássia,
compartilho os dois lados desse star/ser/visão... Sinto-me como alguém para-o-mundo, mas como sair daqui? Teria de levar algumas pessoas, e estas têm também seus pés na lama do brejo. Então, viajo em imagens de filmes e fotos, de sonhos e esperanças. Um dia, quem sabe, amanhã...

Parabéns! É sempre bom demais te ler.

Luiz

Escrito por: Luiz de Aquino | 07-06-2009

Cássia,
Compartilho os dois lados desse estar/ser/visão. Sinto-me como alguém para-o-mundo, mas como sair daqui? Teria de levar algumas pessoas, e estas têm também seus pés na lama do brejo. Então, viajo em imagens de filmes e fotos, de sonhos e esperanças. Um dia, quem sabe? Amanhã, talvez...

Parabéns! É sempre bom demais te ler.

Luiz

Escrito por: Luiz de Aquino | 07-06-2009

Cássia,

Muito bom ler o que você escreve. Uma chamada à reflexão da caminhada pela vida; das escolhas, do prosseguir e do chegar. Reli com meus filhos, minha mãe e irmãos. Interessante a forma como você retrata sua experiência sopesando com as origens e o contexto familiar.

Abraços,

Seus primos Luis e Alberto R. Fernandes

Escrito por: Luis R. Fernandes | 20-06-2009

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