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04-06-2006

De amores e outros abismos

O amor é bom assim:
uma frase que nos pega desprevenidos,
um resmungo que a gente não tinha ouvido,
um pigarro, um tossido.
- O que foi que disse?
- Não pise no meu pé que já sou triste.

Como quando por acidente,
Luis encostou no joelho de Iracema
E ela lhe sorriu por educação e pena.
Ao lado dela estavam os únicos homens da festa e da casa,
ou mais ou menos,
os que a cortejavam,
os poucos em que ainda restava um sopro
do masculino
E um gato macho,
chamado Felipe.

E o amor foi como um soco no estômago,
um soluço
que não foi curado com susto,
mas com uma colher de açúcar
daquele afeto repentino.
Assim mesmo amor amargo,
que nem adoça nem se consuma.

Luis lhe perguntou se podia ficar ali ao lado,
com uma estátua paralela,
à espera da pátina do tempo
ou de um sentido.
E Iracema soube,
como que por encantamento,
que esperaria por ele nos milênios seguintes.
O amor como um convite ao desespero,
o amor abismo.
O amor micose
que a gente pega
quando fica de bobeira
na beira da piscina.

Pobre Iracema!
Ela que saía tanto para pegar o amor nas ruas.
Mas amor assim não tem graça,
esses de que a gente anda atrás nos bares,
que a gente troca nome e telefone,
que a gente marca encontro
e beija nas boates.

Esse é o flerte programado,
o carinho-contrato.
Mas para Iracema estava reservado
o absurdo de um amor flexionado
pelo sujeito errado.

29-05-2006

Os lugares imprevistos do amor



Mônica mora só. Como certas espécies de solteiros, detesta a hora terrível de ir a supermercados fazer compras. Exibição constrangedora da própria solidão. Lá estão famílias inteiras divertindo-se. Um casal sorridente, maravilhado com as ofertas nas gôndolas, troca beijos apaixonados diante das mil caixas de sabão em pó. O burburinho das crianças pedindo, gentilmente, mamãe, me compra um chocolate, um brinquedo, uma bicicleta, isso, aquilo!
E ela, ali – os óvulos caindo um a um, todo mês, como mangas maduras passadas do tempo de colher. Ela exagera, claro. Fantasia um pouco – convenhamos. Ir às compras em família não é necessariamente o que se pode chamar de excitante. E famílias já não são exatamente apaixonadas. Mas é que – ah, natureza humana! – o frango a R$ 1 real do carrinho ao lado sempre nos parece mais barato do que o nosso.
Por falar em carrinho, é ali mesmo na entrada do supermercado que começa seu drama. Enquanto os outros, os felizes, os bem casados, os namorados, os escolhidos pelo Amor, pela Sorte, pela Fortuna, vão longo conduzindo aqueles carrinhos gigantes, ela carrega, envergonhada, uma mísera cestinha, afinal, para que comprar tantos víveres se em seu pequeno apartamento só uma boca vive e tão sozinha? Se tudo se perde, se tudo passa do ponto: a carne, a imensa melancia, ela mesma, cuja data de fabricação já está meio apagada nos documentos de identificação. Ela, que já foi lançamento, marca nova com campanha de divulgação, já está quase com a data de felicidade vencida.
Nem as pequenas delícias da solteirice lhe servem de consolo. Poder levar todas as bobagens e guloseimas que se quer e deseja, e comê-las inteiras, sem ter que repartir com uma família de bocas famintas. Me dá só um pedacinho! Nada disso! Os bombons divinos só para ela! O xampu perfumado que dura meses! E, claro, o café solúvel que não dissolve nunca o seu desespero.
Mônica está cansada de ir às compras só e mais ainda de procurar o amor nas ruas. Os homens interessantes não estão lá, nos bares, nas festas, nas boates, em lugar algum. Só mesmo se o acaso lhe sorrir. À procura de um norte, ela leu uma vez e uma revista feminina que o amor acontece até nos lugares mais imprevistos, nos supermercados abertos 24 horas, por exemplo.
A revista ensinava a descobrir, não só os diamantes incrustados nos homens feios e tímidos, mas a sua alma gêmea, mesmo entre murchos maracujás de gaveta. Eles é que dão o melhor caldo – a reportagem dizia – e prodigalizava dicas também de como paquerar entre as seções de produtos para higiene e de bebidas. Preste bastante atenção naquele homem que faz compras em horas incomuns, tarde da noite, no silêncio das madrugadas – afinal, solteiros complexados evitam freqüentar supermercados nos horários de pico, preferidos por donas de casa. Observe atentamente o que ele coloca na cestinha, o que pode revelar seu estado civil, preferências, manias, situação financeira, se tem ou não namorada. Se ali vai um bom vinho, congelados, pequenas porções de salada já preparada.
Ela tentava se lembrar disso quando saía. Estar sempre arrumada, pronta, maquiada. Quem sabe se ali mesmo na esquina... Naquela noite, porém, meia noite, para ser precisa, teve uma vontade súbita de comer palmito. Foi descabelada mesmo, roupa puída, matar seu desejo fantasiado de grávida. Enquanto distraidamente pegava o primeiro vidro que via, o rapaz lhe perguntou como é que se fazia para escolher palmito. Ele sempre errava. Mônica lhe ensinou, prestativa, e trocaram contatos. Ela até se esqueceu de comer sua delícia.
No dia seguinte, no momento exato em que tentava abrir o vidro, o telefone tocou. Era o cara! Ela descobrira o caminho da mina. Não só passou a freqüentar supermercados pelas madrugadas, repondo regularmente seus estoques de conservas variadas, palmitos, aspargos e alcaparras, como, toda vez que queria que um dos bonitões lhe ligasse, começava a esfregar lentamente a tampa dos vidros, como uma lâmpada mágica.

- Crônica publicada ontem em O Popular. Aqui, na íntegra, sem contenções.

26-05-2006

4 X 4


Epígrafe:
“Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores....”

Já esgotei meu estoque de bunda no chão.
Não fico de quatro,
só de gatão.
Serei 1 de 4,
porque melhor são:
três pássaros na mão
e um voando...
para fazer verão.

Como de hábito,
vou para o quarto,
para o diabo a quatro,
mas não me peça,
não faço
o triste teste do quatro na hora do ato
falho
ou aquela do ninho dos quatro mafagafos
ou dos quatro tigres tristes que comem
trigo
no mesmo prato
de macarrão.

Refrão:

Outras menores que eu
já viveram história
bem mais feliz.
E eu, por que diabos não?
O que diabos fiz
pra merecer sempre um soco
no coco do coração
e no nó do nariz?
E nem falo de estatura moral
ou de não ser a tal –
só me kiss quem me quis
e quis mal.

E assim sou assim:
um quatro à esquerda,
uma foto quadrada,
quatro por quatro,
por cima da mesa
ou gemendo debaixo
do criado -
mudo, emburrado, mimado -
pela Glória de viver
de galho em galho.