23-02-2007
Sempre te vi, nunca te amei
Imagem-epígrafe:
É... Como as coisas mudaram...
O namoro era intenso, embora morassem em cidades distintas: Lud em Goiânia, Leo, em São Paulo. Falavam-se todos os dias, várias horas, pelo MSN, naquela linguagem sucinta de quem passa a maior tempo diante do monitor e, no entanto, não dispõe de tempo bastante para digitar essas longas e exaustivas palavras do idioma. Por um resquício de conservadorismo, não irei reproduzi-la aqui.
“Morzim, troque essa foto. Você não está mais assim.”
“Como você sabe, se você nunca me viu pessoalmente?”
“Mas essa foto é da semana passada. Tenho certeza de que você já mudou. Seu cabelo já deve estar diferente. Deve ter crescido.”
“Meu cabelo não cresce tão rápido”.
“Vai, morzim, por favor, quero te ver como você está agora.”
“Tudo bem. Vou pegar a máquina digital.”
“Te amo.”
“Pronto. Já troquei.”
“Eu não disse que você já estava diferente? E ainda mais linda.”
“Ah, amor. Te amo.”
“Morzim?”
“Humm?”
“Queria ver como você está agora.”
“Mas você já viu.”
“Agora. Quero você como você muda de minuto a minuto. E você sabe, a gente sempre muda. O tempo é uma coisa louca. A cada segundo, milhares de celular morrem e outras renascem. As fotos ficam antigas rapidamente.”
“Tá. Mas você não vai notar diferença.”
“Nossa, já está muito diferente. E ainda mais linda.”
“Ah, amor. Te amo.”
“Morzim?”
“Ah, não. De novo?! Você não prefere que a gente instale uma web cam?”
“Ah, morzim, eu já comprei e te enviei. Você deve recebê-la amanhã.”
********
Amanhã.
“Nossa, morzim! Essa camiseta que você está vestindo está tão velhinha. Por que não veste aquela camisola sexy que te mandei?”
“Mas eu nem vou dormir agora.”
“Ah, morzim, por favor.”
“Tá. Peraí. Vou lá dentro.”
“Ficou linda demais. Ai, que saudade! Mas, morzim, você nem se maquiou. Você tem que ficar sempre produzida, como na primeira foto sua que vi.”
“Tá. Já volto.”
“Morzim, o que você fica fazendo quando não está escrevendo pra mim?”
“Ora, nada!”
“Mas estou vendo que você olha para a tela, que você digita alguma coisa. Com quem você fica conversando além de mim?”
“Com ninguém mais, quer dizer, visito uns blogs, entro no Orkut, essas coisas.”
“Morzim?”
Crônica publicada hoje, 23 de fevereiro, em O Popular.
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15-02-2007
Extravios
Que não dava conta do recado, foi o que Severiano disse à polícia.
“Não dava conta do recado?” – riu o delegado, acerca do trocadilho e da rima com a própria função, afinal delegado e escrivão são poetas em gestação ou em estado dolorido de frustração.
Você por acaso conhece algum desses oficiais da lei que não prometam publicar um livro num dia futuro? Na convivência diária com os crimes e contravenções humanas, acabam fruindo tão larga experiência que não resistem ao desejo de espalhá-los. Além disso, transcrevem e narram, e isso de narrar gruda e penetra a pele, que nem nicotina.
O delegado Robervaldo, embora tentado a entregar-se a divagações poéticas e ficcionais, devia entender e principalmente explicar rapidamente à opinião pública por que Severiano, durante 20 anos, retivera três mil cartas em sua casa, por que não as entregara aos seus destinatários legítimos.
O carteiro alegou que não dava conta do serviço, que vivia sobrecarregado. E isso nem constituía total inverdade, porque o trabalho para ele era mesmo demasiado. Um peso a sacola de correspondências para a ossatura magrela. Severiano tinha sim suas malandragens. Confessou deixar a bicicleta de lado, para tranqüilamente chupar um picolé de groselha ou tirar uma soneca, sob a sombra generosa de uma árvore, numa praça aprazível dos bairros que visitava.
Mas não foi essa a principal razão para ter deixado de entregar as cartas. E não era de todas que se apropriava, apenas daquelas que exerciam uma espécie de poder hipnótico. Uma letra bem desenhada, um nome diferente, um endereço curioso, era bastante para que ele fosse tomado de extraordinário interesse.
“Livros são caros, doutor. E em Goiânia, como de resto em todo o Brasil, não há bibliotecas públicas decentes”. Histórias realmente fascinantes escondiam-se sob envelopes e selos. Vidas em retalhos alinhavados. O que teria a dizer a Teresa um sujeito cuja profissão vinha traduzida no próprio nome: o taxista Passos Dias Aguiar? E a pobre Teresa, como seria penoso para esta pernambucana viver num lugar chamado Rua das Lágrimas?
O delegado ficou intrigado com o depoimento do carteiro e fascinado quando viu tantos remetentes e destinatários extraviados. Uma preciosa coleção de vidas desencontradas era o que o carteiro conseguira formar em anos de compulsão secreta. Quantas notícias deixaram de ser dadas! Mortes, partidas, despedidas nunca explicadas. E as cartas de amor? Quantos desencontros forjou com sua curiosidade e avidez de leitura!
A reportezinha petulante perguntou qual seria o destino das cartas descobertas. Seriam devolvidas aos correios que certamente tentariam entregá-las. Mas e se não estivessem mais vivos os destinatários? E os prejuízos materiais e emocionais, quem iria repará-los? O Estado iria indenizar as vítimas de tal crueldade?
Antes porém de entregar o produto apreendido à Justiça, o delegado não resistiu e leu vorazmente centenas delas. E que surpresa quando encontrou entre elas uma carta anônima, endereçada a ele mesmo, o marido Robervaldo. Datada de 20 de janeiro de 1996. “Maria Rita te trai com seu escrivão”. Ano ruim, ano em que as excessivas responsabilidades de sua profissão não permitiam que ele também, ser humano falível, desse conta do recado. Embolou a cartinha e atirou-a sutilmente ao lixo. Bobagem. A vida era feita mesmo de muitos extravios. Mas que este caso valeria um capítulo em seu livro de memórias e inquéritos esdrúxulos, lá isso valeria...
Crônica publicada dia 15 de fevereiro de 2007 em O Popular.
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19-01-2007
Presentes do além
Quando Cecília recebeu o primeiro presente, acabava de voltar da igreja. Tinham celebrado a missa por um mês de falecimento. Apenas um. E justamente no dia em que fariam 30 anos de casamento. Ao abrir a caixa, ela quase tombou de susto, não tanto pelo relógio de parede – mais um para sua coleção – que pulsava como um animal vivo, mas pelo bilhete. Não havia dúvida. Era dele a assinatura. As mesmas consoantes dobradas para a direita. O mesmo jeito tortuoso de desenhar o jota. Não havia dúvida. Era um presente do além.
Entretanto, para Luciana, a filha, tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Alguém poderia ter imitado as garatujas do pai. A doença o atingiu tão rapidamente, atirando-o no estado da letargia e da inconsciência. Ele não teve tempo para despedidas ou para preparar presentes póstumos.
Após seis meses, porém, quando Cecília completou 60 anos, entregaram o buquê de flores do campo. E mais um bilhete. E aquele jeito de escrever que era só dele. Luciana chegou a vacilar, mas manteve seu ceticismo e tratou logo de consultar a floricultura. Disseram que um senhor magro e grisalho, elegantemente desempenado, encomendara o ramalhete. Mais não souberam contar.
A princípio, quis esclarecer tudo, mas deixou de lado. Era bom ver a mãe agitar-se de expectativa quando se aproximava o dia, assisti-la abrir as embalagens, exultante. “Ele se comunica! Meu Deus, ele se comunica comigo!” E ao seu modo, ela também se emocionava, por mais que soubesse que na vida e mundo nada se dá de inocente e graça.
Embora duvidando da comunicação das almas, surpreendia-se com as escolhas que o pai soubera fazer, com a coragem que teve de encarar a morte muito antes que ela se anunciasse. Uma espécie de seguro de vida afetiva, para que, mesmo definhando o corpo, não cessassem as manifestações de amor. O presente exato para cada ocasião, cada ano. O filhote de bassê para fazer companhia a Cecília desde que Luciana se casou. O casaco de lã para aquele inverno de frio inusitado.
Como ele podia prever que no ano de 1996, uma massa de ar gélido faria a temperatura cair nessa terra de fogo? Ah, mas seu pai sempre manteve a disciplina militar, mesmo depois de deixar a farda. Com sua incansável precisão e método é que havia conquistado a jovenzinha subversiva, num Rio de Janeiro de repressão, num estado de amor totalmente absurdo e contraditório. Tanta estranheza e tamanha contradição que deixaram ambos a corporação e o partido para se dedicar a sua história privada de febril atração de opostos.Vieram assim morar em Goiânia.
Otávio decerto mantivera seus contatos entre os militares, especulava Luciana. Deveria ter depositado uma determinada quantia num banco e encarregado alguém, provavelmente um antigo colega de farda, de comprar os objetos, efetuar os pagamentos, enviá-los. Mas quem teria uma tal sensibilidade para escolher o presente que a ocasião pedia e sobretudo para enviá-los não somente nessas datas comuns e clichês, aniversário, natal, bodas, mas nas pequenas datas significativas? No dia em que Cecília finalmente se decidiu a contratar um acompanhante e ir com as amigas para uma casa de dança de salão. Havia freqüentado as aulas por um ano, mas nunca se animava a sair. Naquela noite, porém, tendo se decidido, recebeu a caixa de sapatos com um modelo elegante que lembrava muito os pares usados pelas dançarinas de sapateado.
Que fosse apenas coincidência. Que fosse. Que seu pai tivesse sido tão vaidoso e egocêntrico que não aceitava ser esquecido e por isso os souvenirs regulares. Por outro lado, o gesto dele não tinha aquele quê de contratual, de obrigação e permuta que caracteriza a troca de presentes. Era espontâneo, gratuito, afinal, como retribuição, Cecília não podia senão dizer preces ou colocar flores em seu túmulo.
14:36 | Permalink | Comentários (3)