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03-09-2006

Profissão candidato

Quando criança, fui uma leitora voraz de histórias em quadrinhos. Os personagens de Maurício de Souza eram companheiros inseparáveis e eu sempre encontrava, nas peripécias de Mônica e Cebolinha, espécies de lições ou mensagens aplicáveis às diversas situações do cotidiano.
Lembro-me, por exemplo, do drama que afligiu Mônica e Magali, assim que começaram a pensar em meninos como potenciais namorados. Conversavam sobre o tipo de garoto que desejariam namorar quando crescessem e perceberam que ambas esperavam um rapaz alto, loiro e de olhos azuis.
Fizeram uma enquête com as meninas do bairro e constataram que era esse o modelo imaginado por todas. Procuraram então identificar, entre os meninos, aqueles que tivessem tais características. Mas só viam desfilar baixinhos, gordinhos, moreninhos, pés-de-chinelo, meia boca, meia sola e nada do príncipe dourado dos contos de fada. O único rapaz alto, loiro e de olhos azuis que circulava por ali era um sujeito completamente corcunda e desengonçado. Encontraram para o impasse uma solução engenhosa.
Transformaram os meninos de hoje nos homens de amanhã, equipando Cebolinha e Cascão com perucas louras e pernas de pau. Nada tão diferente do que as mulheres ainda fazem, até as balzaquianas, como é hoje a própria Mônica, no baixinho de seus trinta e poucos anos, forjando na fantasia o perfil impossível do homem dos sonhos, e, diante do acre gosto de realidade, dando-lhes surras desaforadas com um coelhinho azul.
Outro desfecho igualmente cômico envolvia também a dentuça e o “amedlontado” Cebolinha. Num dia de calor, cada qual montou uma banquinha na porta de casa para vender limonada gelada. No entanto, rivais de carteirinha, deram início a uma concorrência desenfreada. Quem levasse uma limonada, ganharia outra - oferecia Mônica. Cebolinha dobrava a oferta e dava dois copos de brinde. Mônica aumentava pra três.
Para atrair os fregueses, ele enfeitava a banca com um pezinho de limão num vaso. Ela ia mais longe e plantava um limoeiro ao lado. Ele plantava dois. Ela três. E quando se deram conta, na sua rivalidade desbragada, estavam os dois perdidos, com as minúsculas bancas, no meio de uma floresta, qual candidatos que vão cobrindo a oferta de seus concorrentes e se perdem nos labirintos-absurdos-de-suas-propostas-negócios-de-outro-mundo.
Essa é a lembrança que me vem quando ouço o burburinho dos vendedores nas feiras livres da disputa eleitoral. Cada candidato quer oferecer mais uma limonada de brinde. Bolsas e cartões disso e daquilo. Um deles propõe inclusive um salário para a dona de casa, em substituição aos benefícios já existentes. Uma remuneração pela louça lavada e em defesa da sagrada instituição da família. Bem paga, ela nunca deixaria de preparar o jantar e os casamentos seriam salvos, pois a comida rápida, o microondas, os restaurantes por quilo são os principais responsáveis pela dissolução dos casamentos modernos. Não é de se espantar se de repente surge por aí um candidato oferecendo bolsa-lipoaspiração e bolsa-cirurgia-plástica, para conquistar o perseguido eleitorado feminino.
E há também candidatos que, entra eleição, sai eleição, estão ali pleiteando uma vaga que nunca alcançarão. Com codinomes estranhos e engraçadíssimos, jingles, roupas e slogans cômicos, são candidatos por profissão. Decerto tiram o sustento disso. Enchem tanto a paciência de empresários que acabam recebendo doações para suas humildes campanhas e certamente dessas colaborações separam uma partezinha para pagar as contas de água e luz.
Alguns me fazem rir. Outros me metem medo com suas sandices. E como questiona Mônica em uma de suas historinhas, medo é respeito ou falta de respeito? Ela achou que era falta e o desfecho não podia ser outro: um olho roxo em Cebolinha. Por via das dúvidas, vou continuar curtindo meu medo bem caladinha, de urna fechada, onde não entra nem doido nem mosquito

19-08-2006

A flor fora de lugar

medium_wflor_fora_de_lugar.jpg Entre tantas flores amarelas, milhares delas, brotou uma única flor vermelha, altiva, esbelta, mas inexoravelmente solitária. Enquanto as outras, amigas, semelhantes se curvam ao sol inclemente do meio dia em ponto, à fumaça dos carros que seguem indiferentes adiante, ela se ergue, imponente, além da massa de folha e pétala, e vê além no horizonte. Fico imaginando o que trouxe aquela flor ali decerto, em uma das muitas rotatórias da avenida T- 63, minúscula semente perdida, desgarrada rês. Nem paisagismo ou jardinagem. Foi talvez a sorte, seus caprichos e suas enxadas. Ou talvez ela tenha sido transportada no bico, pés, penas ou fezes de um pássaro viajante ou migratório. Caiu e afundou por acaso na terra adubada que não era pra ela. Ou, sem seu ninho cavado ou cova rasa, teve que rasgar, com as próprias mãozinhas de flora em feto, um cantinho de terra pedregosa e árida. O jardineiro da Comurg, companhia que recolhe o lixo e crias nichos verdes de vida na cidade cinza, pode ter deixado tombar um saco de sementes, de linhagem. Ao recolher famílias inteiras, esqueceu-a, sozinha e derradeira. Varrendo o que restou, ela foi embora, não se sabe por que mistérios, pás e vassouras, parar em outra sacola. E para subsistir, precisou arranjar por certo farta água de coragem. Quantas noites não terá passado, encolhida na escuridão, o broto estendido para o céu, recolhendo umas poucas gotas de chuva e orvalho. Ser diferente na indiferença nunca é fácil. E em outra rótula, a poucos metros dela - a ironia – plantada toda sua família vermelha. De sua pobre altivez, pobre menina rica, exuberante cisne, entre patos de curto pescoço, ela avista os seus, mas não pode seguir até eles sem pés ou pneus. Deverei eu interferir no destino das flores sem par? Arrancar e enfiar suas raízes num lar? E fazer dela mais uma, igual, sem horizontes, diferenças e indiferenças pra contemplar? Quem sabe se não é o senso incomum de sua solidão que não a deixa murchar? Dirão os especialistas em jardinagem que o que avisto e escrevo são miragens, afinal, nas praças, rótulas e canteiros das avenidas, não se plantam senão mudas formadas, cuidadosamente escolhidas, dispostas e regadas. E uma flor assim terá sido ou fantasia ou caso muito bem pensado, jamais obra de mero descuido e acaso. Eu, porém, lhes digo: não nos tentem tirar a poesia, essa flor vermelha e rara que se cultiva nas fábulas e alegorias, a luta humana e inumana para brotar, crescer, produzir cor e clorofila, e construir ao menos um pouco de singularidade num mundo que a todos nós atira na mesma comum e amarela vala. Crônica publicada hoje em O Popular

07-08-2006

Jóia

medium_jóia.jpg

É preciso sim
um pouco de delicadeza
até pra que a gente seja
um nome de reserva
na agenda.
Até a trepada ocasional,
sem dia ou hora marcada,
para a quenga
das mais quengas,
vale convite, telefonema,
mas os homens
já não querem dar nada.

Não pagam sequer a foda.
Não dão beijos
nem anéis
nem mandam rosas.
Chamam direto
pro quarto.
Cinema, mãos dadas,
jantares, papo
são filmes antigos
e velhos prefácios
que só as mulheres fazem.

Homens
não usam maquiagem,
não compram carinho no shopping
não põem flores nos vasos,
como fazemos,
desde meninas,
lavando juntas
nossas próprias lágrimas.

Não deitam no colo quentinho,
não têm quem lhes cate os piolhos
ou lhes arranque os espinhos.
Só vão ao banheiro,
sozinhos,
por isso,
não sabem sequer sentir amor.

Deixe que eu te cure a ferida,
que te ligue
todo dia seguinte.
A única jóia
que um homem te daria
não te dou.
Mas ao menos
te mando a pilha,
amiga,
para o seu vibrador.