03-01-2007
F de Fabuloso
F de Fabuloso
V
de volver.
A vingança
do tempo
foi você continuar
a me querer
e eu,
não te esquecer.
Você faz meus olhos se acenderem
em chama.
Um nós
incandescente.
Juntos,
estrelas cadentes.
Caímos direto
na cama
dos convalescentes,
no leito
lençol e lava fervente
dos que amam.
Minha cama
já não serve pra dormir,
tem manchas,
espinhos e lâminas
e satélites
cortantes
tal a saudade
desse instante.
O teste do amor
pra mim é esse.
Se meus olhos lançam
faíscas
lado a lado
do objeto amado.
Se brilham
sem que o contemplem,
só de pensá-lo.
Se rastros de estrelas ficam
presos nos retratos,
é porque o amor
está presente,
o amor
e sua cauda
de cometa Halley.
Na minha vida
há agora
tudo o que brilha.
Há nos meus olhos,
famílias de astros.
Meu brilho
se reconhece
no seu brilho.
Minhas patas de sagitário
na sua lã de áries.
Você não é só meu planeta,
é meu planetário.
Sua casa, minha casa.
O sol nasceu num domingo.
As luzes da cidade
fazem algum sentido.
Eu não sabia
quando sentisse,
que sentiria isso.
Um amor de Fada
e de Fábula.
Sarça em fogo.
Coração
no alto do pescoço,
trespassado
por sua falta.
A moral de nossa história
é essa:
o amor dá certo
quando começa
tudo errado.
Quando é tombo
e equívoco.
Quando é praticamente
improvável.
Você é meu quase impossível.
Por isso é incrível.
Seu demônio fabuloso,
eis sua fada
de fazer gostoso!
Aos 120 dias de um ano cheio de surpresa e significação.
12:46 | Permalink | Comentários (2)
15-12-2006
Cará quando acha boa terra, racha
Quando a gente vive perto demais de alguém, naquela intimidade e promiscuidade de corpos e toaletes que tornam qualquer normalidade impossível – de perto nossos narizes são sempre grandes e os dedos dos pés monstruosamente estranhos – inevitavelmente surgem os códigos estritos do afeto e da implicância.
São aquelas dezenas de apelidinhos carinhosos e ridículos compartilhados pelos casais, que tão logo passam a usar o banheiro de porta aberta, trocam a voz melodiosa da sedução pelos grunhidos de bebê e outras bizarrices. São também os xingamentos e gírias repartidos entre irmãos e amigos, esses seres que manifestam o amor, no mais das vezes, enchendo o saco e cortando carapuça.
Sim, cortando carapuça – uma expressão que talvez nem todos conheçam, mas que integra, por exemplo, o meu próprio léxico familiar. As famílias costumam ter, aliás, seus vocabulários próprios, construídos a partir das histórias que viveram ou conflitos que enfrentam. E mães e pais têm seus sortidos de provérbios com que educam e deseducam os filhos.
Meus pais, que nasceram e sempre viveram na roça, nos legaram, aos filhos, pelo menos uma dúzia de expressões peculiares, que, volta e meia, usamos entre irmãos, mas também entre amigos e conhecidos. Naturalmente, os não tão íntimos as desconhecem, olhando-nos perplexos e indagativos.
Cortar carapuça nem é mais curiosa delas, uma vez que já existe a expressão “a carapuça serviu”, aplicada cada vez que alguém faz um comentário maldoso ou crítico e outro se sente ofendido. Fabricar a tal touca, porém, refere-se ao próprio ato de implicar, de maldizer. E como entre famílias somos pródigos em picuinhas...
Cará quando acha boa terra, racha – gostava de dizer minha mãe quando abusávamos de sua paciência ou boa vontade, significando que um tubérculo em terra muito fértil cresce até rachar, mas, sobretudo, que filhos muito bem tratados se excedem e se tornam mimados. Em geral esse provérbio – e minha mãe sempre os colecionou – era acompanhado de uma boa sova. Jeito rude de nos avisar: “você está pegando peso comigo”, provavelmente o equivalente de “você está pegando pesado”.
E eram muitos os avisos que nos dava, por meio de suas histórias proverbiais. Uma das que gostava de contar era do homem que saía pra caçar o quati do almoço. De pontaria boa, o caçador atirava no bicho, que despencava da árvore. Confiante, gritava para a esposa: “Mulher, pode jogar o feijão fora que o quati ta morto!” Ela fazia o mandado. Quando o homem voltava para buscar a caça, porém, o bicho, matreiro, que se tinha feito de morto, não deixara rastro. Moral da história: algo como “não conte com o ovo no quentinho da galinha”.
Com essas e com outras tentava nos ensinar a ser prudentes. Principalmente para as filhas mulheres, às quais não se recomendava que fossem volúveis no amor, advertia: “macaco que muito pula, leva chumbo.” E se tínhamos comido pé de cachorro e vivíamos pela rua, nos alertava: vocês estão num pé e noutro, igual ao cachorro do Sestroso. Quem seria esse Sestroso, nunca fizemos idéia, mas até hoje usamos essa expressão, quando queremos nos referir a alguém que anda por aí, com ares de importância, como se tomasse inadiáveis providências.
Já meu pai costumava dizer, quando se sentia desanimado, que estava “desacoçoado”. Bem mais tarde, fui entender que a pronúncia correta era “desacorçoado”, que por sua vez é uma alteração de “descoroçoado” - que significa, originalmente, com o coração despedaçado, desfeito, desalentado, sem forças. E poética também era minha mãe, que quando se encontrava deslocada, sem saber o que fazer ou sem assunto no meio das pessoas, dizia estar vendida. Ou ainda, quando acordava com uma vaga sensação de melancolia, vendo tudo sem achar sentido em nada, exclamava: ah, estou tão “sobressaltar”! E seu sobressalto nada tinha a ver com susto. Como nada têm a ver com os dos outros os nossos próprios dicionários, poéticos e pessoais.
Íntegra da crônica publicada dia 15 de novembro em O Popular. Aproveitei pra mudar o título, já que aqui tenho mais espaço e menos editores :)
13:45 | Permalink | Comentários (0)
20-11-2006
Amor de papel
http://www.flickr.com/photos/umdiaumafoto/296748215/
Na calçada de uma rua qualquer de São Paulo, o homem dorme, cobrindo parte do corpo de sua amada. Barbudo, sujo, ele se aninha sob o plástico. A amada, porém, os cabelos longos, os olhos azuis, os ombros à mostra, o corpo nu – parte dele sob o peso do companheiro – tem feições sensuais e um semi-sorriso. Não reclama dele, de sua miséria esmagadora. Não lastima a sorte de dormir assim ao relento, a pele exposta a olhares passantes e ventos enregelantes.
Não lamenta, não porque seja uma dessas mulheres estóicas que subsistem nas canções de Mário Lago e Chico Buarque. Ela é resignada e silenciosa porque é de papel. Só uma mulher de papel seria assim tão doce e dócil. Nem Amélia na sua indiferença para com a fome. Nem as mulheres de Atenas, que secam por seus maridos.
As formas perfeitas do seu corpo devem ter sido cortadas de um cartaz ou de um grande banner com a ciência certa de uma tesoura ou com os macetes de um estilete. Sim, ele está dormindo com o pedaço de um anúncio ou de uma capa de revista. Toda essa imagem é, aliás, um recorte eloqüente da realidade. Trata-se de uma foto, publicada na net, feita pelo fotógrafo paulista Roberto Delduque, um flagrante impactante da dureza, ironia e poesia das ruas (www.flickr.com/photos/umdiaumafoto/).
Sabemos para que serve aquela amante em policromia. Americanos comprariam bonecas infláveis. Não esse indigente brasileiro. Resta recorrer à criatividade, ao improviso. Mas o interessante é que, ali, ele dorme o sono de depois do amor ou de depois do porre, ou talvez o sono das crianças que abraçam bonecas, bichos de pelúcia, ou qualquer coisa que lhes pareça bela, para, de certo modo, introduzi-la na escuridão do sono e adoçar o despertar.
Ao ver tal foto, fiquei pensando no que teria levado aquele homem a valer-se de tal expediente no amor. O sentimento da solidão? A atração irresistível pela beleza que não se põe na sua ausência de mesa? A publicidade propõe todo o tempo a aquisição do produto e do sucesso. E em grande parte dos anúncios, o produto e seus derivados estão atrelados à figura de uma bela mulher. Já que ele não pode comprar o melhor carro, o mais moderno celular, a melhor cerveja, para ter a melhor mulher, pode ao menos assenhorear-se do próprio anúncio, torná-lo seu objeto de consumo, manuseá-lo. Pode fazer o mesmo com o torneio dos corpos impossíveis estampados nas capas das revistas de nu.
Contemplando a foto, lembrei-me de como eu furtava as revistas eróticas de meu irmão mais velho, arrancava-lhes os corpos nus, que não me interessavam absolutamente nos meus sete anos, e me divertia com suas cabeças, fazendo extravagantes cortes de cabelo. E havia também as bonecas de papel, compradas nas bancas, com roupas também de papel, que eram sobrepostas aos corpos rasos. Comprá-las era um meio de renovar, baratinho, meu estoque de fantasias. E suas figuras planas me divertiam. Elas não eram menos bonecas por isso.
Da mesma forma, tudo o que eu que achava belo e colorido, era recortado, como se, assim, eu conseguisse libertar, imprimir vida às figuras e delas me apropriar. Recortava ainda os brinquedos anunciados nos folhetos das lojas de departamento, aquilo que jamais seria meu, mas que de certo modo eu já tinha, em simulacro. Mas eu era apenas uma criança. O problema é que nos tornamos adultos vorazes e, nessa sociedade de consumo, que dilata nosso desejo até o infinito, tantas vezes nos distraímos com a ilusão da posse, com a sombra da coisa e não com a própria, com amores de papel e pessoas de mentira. E nos tornamos também infantis criaturas de celulose, frias, indiferentes, esquecidas de que a verdadeira vida e os verdadeiros homens pulsam lá fora, na rua, ali ao lado, aqui dentro.
Crônica publicada dia 19 de novembro em O Popular.
07:45 | Permalink | Comentários (3)