15-02-2007
Extravios
Que não dava conta do recado, foi o que Severiano disse à polícia.
“Não dava conta do recado?” – riu o delegado, acerca do trocadilho e da rima com a própria função, afinal delegado e escrivão são poetas em gestação ou em estado dolorido de frustração.
Você por acaso conhece algum desses oficiais da lei que não prometam publicar um livro num dia futuro? Na convivência diária com os crimes e contravenções humanas, acabam fruindo tão larga experiência que não resistem ao desejo de espalhá-los. Além disso, transcrevem e narram, e isso de narrar gruda e penetra a pele, que nem nicotina.
O delegado Robervaldo, embora tentado a entregar-se a divagações poéticas e ficcionais, devia entender e principalmente explicar rapidamente à opinião pública por que Severiano, durante 20 anos, retivera três mil cartas em sua casa, por que não as entregara aos seus destinatários legítimos.
O carteiro alegou que não dava conta do serviço, que vivia sobrecarregado. E isso nem constituía total inverdade, porque o trabalho para ele era mesmo demasiado. Um peso a sacola de correspondências para a ossatura magrela. Severiano tinha sim suas malandragens. Confessou deixar a bicicleta de lado, para tranqüilamente chupar um picolé de groselha ou tirar uma soneca, sob a sombra generosa de uma árvore, numa praça aprazível dos bairros que visitava.
Mas não foi essa a principal razão para ter deixado de entregar as cartas. E não era de todas que se apropriava, apenas daquelas que exerciam uma espécie de poder hipnótico. Uma letra bem desenhada, um nome diferente, um endereço curioso, era bastante para que ele fosse tomado de extraordinário interesse.
“Livros são caros, doutor. E em Goiânia, como de resto em todo o Brasil, não há bibliotecas públicas decentes”. Histórias realmente fascinantes escondiam-se sob envelopes e selos. Vidas em retalhos alinhavados. O que teria a dizer a Teresa um sujeito cuja profissão vinha traduzida no próprio nome: o taxista Passos Dias Aguiar? E a pobre Teresa, como seria penoso para esta pernambucana viver num lugar chamado Rua das Lágrimas?
O delegado ficou intrigado com o depoimento do carteiro e fascinado quando viu tantos remetentes e destinatários extraviados. Uma preciosa coleção de vidas desencontradas era o que o carteiro conseguira formar em anos de compulsão secreta. Quantas notícias deixaram de ser dadas! Mortes, partidas, despedidas nunca explicadas. E as cartas de amor? Quantos desencontros forjou com sua curiosidade e avidez de leitura!
A reportezinha petulante perguntou qual seria o destino das cartas descobertas. Seriam devolvidas aos correios que certamente tentariam entregá-las. Mas e se não estivessem mais vivos os destinatários? E os prejuízos materiais e emocionais, quem iria repará-los? O Estado iria indenizar as vítimas de tal crueldade?
Antes porém de entregar o produto apreendido à Justiça, o delegado não resistiu e leu vorazmente centenas delas. E que surpresa quando encontrou entre elas uma carta anônima, endereçada a ele mesmo, o marido Robervaldo. Datada de 20 de janeiro de 1996. “Maria Rita te trai com seu escrivão”. Ano ruim, ano em que as excessivas responsabilidades de sua profissão não permitiam que ele também, ser humano falível, desse conta do recado. Embolou a cartinha e atirou-a sutilmente ao lixo. Bobagem. A vida era feita mesmo de muitos extravios. Mas que este caso valeria um capítulo em seu livro de memórias e inquéritos esdrúxulos, lá isso valeria...
Crônica publicada dia 15 de fevereiro de 2007 em O Popular.
12:15 | Permalink | Comentários (1)
Comentários
Hehehehe, adoro seu senso de humor. Vc se supera a cada dia. Beijos!
Escrito por: Marley | 15-02-2007
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