19-08-2006
A flor fora de lugar
Entre tantas flores amarelas, milhares delas, brotou uma única flor vermelha, altiva, esbelta, mas inexoravelmente solitária. Enquanto as outras, amigas, semelhantes se curvam ao sol inclemente do meio dia em ponto, à fumaça dos carros que seguem indiferentes adiante, ela se ergue, imponente, além da massa de folha e pétala, e vê além no horizonte. Fico imaginando o que trouxe aquela flor ali decerto, em uma das muitas rotatórias da avenida T- 63, minúscula semente perdida, desgarrada rês. Nem paisagismo ou jardinagem. Foi talvez a sorte, seus caprichos e suas enxadas. Ou talvez ela tenha sido transportada no bico, pés, penas ou fezes de um pássaro viajante ou migratório. Caiu e afundou por acaso na terra adubada que não era pra ela. Ou, sem seu ninho cavado ou cova rasa, teve que rasgar, com as próprias mãozinhas de flora em feto, um cantinho de terra pedregosa e árida. O jardineiro da Comurg, companhia que recolhe o lixo e crias nichos verdes de vida na cidade cinza, pode ter deixado tombar um saco de sementes, de linhagem. Ao recolher famílias inteiras, esqueceu-a, sozinha e derradeira. Varrendo o que restou, ela foi embora, não se sabe por que mistérios, pás e vassouras, parar em outra sacola. E para subsistir, precisou arranjar por certo farta água de coragem. Quantas noites não terá passado, encolhida na escuridão, o broto estendido para o céu, recolhendo umas poucas gotas de chuva e orvalho. Ser diferente na indiferença nunca é fácil. E em outra rótula, a poucos metros dela - a ironia – plantada toda sua família vermelha. De sua pobre altivez, pobre menina rica, exuberante cisne, entre patos de curto pescoço, ela avista os seus, mas não pode seguir até eles sem pés ou pneus. Deverei eu interferir no destino das flores sem par? Arrancar e enfiar suas raízes num lar? E fazer dela mais uma, igual, sem horizontes, diferenças e indiferenças pra contemplar? Quem sabe se não é o senso incomum de sua solidão que não a deixa murchar? Dirão os especialistas em jardinagem que o que avisto e escrevo são miragens, afinal, nas praças, rótulas e canteiros das avenidas, não se plantam senão mudas formadas, cuidadosamente escolhidas, dispostas e regadas. E uma flor assim terá sido ou fantasia ou caso muito bem pensado, jamais obra de mero descuido e acaso. Eu, porém, lhes digo: não nos tentem tirar a poesia, essa flor vermelha e rara que se cultiva nas fábulas e alegorias, a luta humana e inumana para brotar, crescer, produzir cor e clorofila, e construir ao menos um pouco de singularidade num mundo que a todos nós atira na mesma comum e amarela vala. Crônica publicada hoje em O Popular
08:48 | Permalink | Comentários (3)
Comentários
Tá ótimo o blog. Bjs. R.
Escrito por: fiume | 20-08-2006
Show, muito bom! Aliás, se não me engano, já li um livro seu, coleção "Cora Coralina", "As cartas que não te escrevi.", abs!
Escrito por: Diogo Matias | 22-08-2006
Adorei, como vc é sensível! Por isso o universo te manda flores solitárias para sua crônica... As vezes me sinto tb como esta flor!
Escrito por: Helen Rose | 24-08-2006
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