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21-06-2006

Calma a quatro mãos

medium_Esp3_20Noivinhos.jpg
Calma é ter o tempo do outro.
É esperar a água ferver
e transbordar
do corpo.
É o tempo de o garçom chegar à mesa
e dizer
estamos fechados
para o almoço
e para a sesta.

E sexta-feira,
quando todos os semáforos
dão vermelho,
ouvir o compasso
do próprio seio
e botar
ou tirar
o pé do freio.
- Calma , não é assim!
- Não queira logo um desfecho
para o que vem
de mim
e do céu que desaba
sobre
nossas grinaldas
de faunos
ou serafins.

Calma é ter pressa de esperar.
E para a dor passar,
meu bem,
devagar,
é preciso vagar.

Calma é ser a noiva
e ainda assim estar no altar,
olhando-a
se desatar dos nós
que deu nos véus
antes de amar.

Cássia Fernandes
&
A.R.

19-06-2006

Mãos que viram flores

medium_IMG_2458.JPG Colher marias-sem-vergonha e fazer das pétalas, lilases e brancas, pontiagudas unhas, eram uma das minhas alegrias preferidas. Pregá-las com cuidado e um bom cuspe, com um carinho que nunca teria qualquer manicura no futuro de esmaltes, flores pintadas e felicidades postiças. A arte estava em pintar primeiro a mão canhestra e então a direita, sem que um único dedo se descolasse ou se desfizesse. E destreza maior era pentear depois os cabelos com elas. Ofício engenhoso demais para quem não ousava sequer equilibrar-se no guidão do velocípede. Para quem caía, dobrando-se sobre as próprias pernas, como uma égua ou goiaba velha, ao menor ralho ou rajada de chuva. Muito molenga, demais manteiga-derretida, excesso de contemplativa, diziam. Minha infância foi de plantas à-toa, de marias-vagabundas; de colchão de noiva, o nome curioso do meu sono espinhoso e irrequieto; de flores amarelas que expeliam um leite secreto e que eu secretamente espremia no seio em promessa, como se amamentasse filhos e fantasias. Fiz “conzinhadinhas” de flores em fogões de tijolo e diminutivos de panelas. Aliás, todo esse delicioso mundo em miniatura, freqüentado pelas crianças tímidas ou desajeitadas, pelos anões e míopes definitivos, contemplado das gramas e capins em que me deitava, enfeitada por picões e carrapichos. Eu me divertindo com a vida difícil das pequenas criaturas. Eu fazendo florestas de liquens para a minha boneca Tutuca. Ela tinha um corpo desapontado como o meu. Não era Suzi. E as Barbies, para minha sorte e para alívio da poesia, nem tinham nascido. Não havia equivalentes masculinos para as bonecas ou carros de plástico cor-de-rosa, ou a plástica das casas, corpos e caras. Os namorados delas eram garrafas de coca-cola tamanho-família; os automóveis, sapatos; a sapateira, um lindo prédio de apartamentos em endereço nobre, onde eu nunca moraria. Eu com meu talento precoce ou inclinação fatídica, tão cedo revelado, para a arquitetura... Por exemplo, quando me ensinaram, na pré-escola da dona Perpétua, que o primeiro passo para se construir uma casa era fazer a planta, aprendi, para sempre e de modo irreversível, que todo desenho de casas deveria começar por uma árvore. Mas por que só uma planta? – eu pensava, até ser introduzida no fabuloso mundo dos plurais e sentidos figurados, e descobrir, na engenharia das frases, minha verdadeira vocação para a vida interrompida. Por esse mesmo tempo, criei cemitérios para passarinhos e pintos mortos. Confeccionei cruzinhas de galhos para seus cortejos fúnebres. Lavei e areei na bica – tendo ao fundo a música ambiente dos gemidos do monjolo – centenas de pedras brilhantes e cacos de louça colorida. Encerrei nos cofres cavados no caule das bananeiras todos esses tesouros da ingenuidade e da perplexidade dos olhos recém-abertos, juntamente com uns olhinhos de lambari que era costume guardar em caixas de fósforos com talco, como pequenas preciosidades, já foscos e fedidinhos. Ainda bem que o quintal era vasto e minha mãe ignorava o que eu fazia lá no fundo, sob a sombra dos pés de abacate. E ainda ignora o que faço com meu perfume de dama-da-noite, no fundo dos corredores, com minhas mãos, ainda pintadas de maria-sem-vergonha, que oferecem flores vivas para estranhos, no meio da rua, e flores secas, guardadas no meio dos livros, para desconhecidos.

07-06-2006

Não bata no vidro!

medium_img_aquario.jpg
Voltei a sentir a dor
que havia tempos não tinha.
As palavras me dão enjôo;
o silêncio, vertigens.
Pus novamente uma tarja preta
à porta dos olhos
antes boquiabertos, agora sonolentos,
opacos
como dessas modelos de foto, freezer e passarela.
- Eu me cago para o mundo,
Mas não me cago nunca
porque não tenho miolos
nem desses orifícios porcos
e famintos!

Estou me transformando novamente
em uma samambaia psicodélica.
Viva! Vivam os meus esporos!
Viva o brejo em que fui colhida!

E outra vez a placa
que vigia o sossego
e o desespero dos aquários:
não bata no vidro!
Não há ninguém em casa
ou no fundo dos armários!
Vade retro! Não insista!

Ninguém mais mexe o copo
sobre a toalha branca
da mesa sextavada,
apontando para as letras
dos nomes penados.
Já inexiste metafísica.

Não há mais espíritos, sobressaltos,
taquicardias, cortinas que ventam sozinhas,
teclados de computador que à noite são digitados
por mãos invisíveis,
como se compusessem um romance ou sinfonia.

Não há mais romance nem poesia.
E esse oco no estômago,
essa ânsia de vômito,
essa azia,
não são gazes, amor, gastrite,
são lombrigas, rastejantes, intestinas.