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30-07-2006

Sobre carros, anjos e cães bem assombrados

.medium_wEdgar.jpg Malditos larápios! Nem sabem a que me vão levar quando levaram Edgar! Edgar foi trazido de longe pra proteger meu carro mal assombrado Pra vigiar o banco do passageiro que em horas invisíveis da noite ou do dia se reclina solitário. Os amigos, impertinentes, pensam coisas impensáveis que se fazem com bancos deitados e carros em movimentos contrários a toda a lei da física e humanística do amor confortável. Cogitei que fosse um anjo ou um defeito de fábrica. Mas este seria o segundo carro defeituoso e anjos automotores não sei se trabalham de co-pilotos nas horas vagas. E juro: nunca fiz ali senão dirigir gostoso. e às vezes rápido. O banco se reclina mesmo sozinho. Um anjo gordo que espreguiça grandes asas de passarinho? Um guarda folgado que me livra de barbeiragens e debruça sobre mim suas asas defensivas quando derramo o vinho fora da taça ou atropelo as pedras do caminho? Quem precisa de cintos de segurança e air bags de plástico com esse anjo que segue com sua pança nos sinais fechados? Paulo, meu amigo, o trouxe de Birigui até mim. Batizei-o Edgar Allan Poe, e suas Histórias Extraordinárias, e minhas desventuras pelas ruas solitárias. O vigia das almas em vigília do meu lado. Obrigada, amigo, obrigado sem nunca ser obrigado! Dava-lhe ternurinhas e banhos regulares, ao Edgar, não ao carro. Eu, que há muito abandonei a infância dos bichinhos de pelúcia tinha ali a discrepância desse único absurdo. Um cãozinho falso aos trinta e tantos anos de idade! De menina que nem sou ainda deleguei o hábito de não desejar banhos se não for arrastado. Assim, meu carro nunca que queria ser lavado e vivia sujinho fernandes da silva desafiando os ingênuos a escreverem súplicas de por, favor, me lave. E levaram. Os analfabetos, se leram, leram errado. E raptaram meu pobre cão. E por certo não lhe dão a ração diária dos meus afagos. Mas aqui lhes prescrevo uma maldição: que por onde o levarem os cercarão fantasmas! E não serão anjos nem diabos, nem deidades, mas o ganir incômodo de minha saudade.

29-07-2006

Que venham, se vierem, as flores!

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Inútil tentar tocar as flores,
prender em cestas
afogar em vasos.
Resta apenas
rogar que venham
e esperá-las,
estendendo a mão
sem nunca não
querer que caiam.

Que
no afã
de afiar tesouras
compor buquês
rodopiar em torno
feito mariposas,
caímos nos clichês
e colhemos
sombra
e simulacro
em vez
da própria coisa.

Fazemos ramalhetes
não das flores,
não com as cores
que têm
mas com as que nossos olhos
lhes vêm.
Ou com o odor
que deixam atrás de si
por compaixão, dores
ou solidão.

Sejamos, pois,
abnegados e contemplativos
como pintores.

E quantas vezes
não as perseguimos
em obstinação,
por capricho
ou pirraça.
Porque o mundo
e seus absurdos
tudo nos deu
de mão beijada
e nunca nos disse
calma!

É preciso dar
a vez aos beija-flores!
É preciso reservar
o pólen ao vento
ou aos bicos
e pés
de penas
de abelhas, artistas
e pássaros.

Mas flores
não vêm de graça.
Nem sempre vêem
ou vêm nas horas
derradeiras
do desespero.

Fazer o que,
se nem todos podem
ser botânicos
ou jardineiros!?
Se o mundo
é de engenheiros
e faustos.

26-07-2006

O ponto G ou Os lugares imprevistos do amor III

Geni nunca foi muito contente com seu nome e não apenas porque cantavam há muito tempo “joga pedra na Geni, ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir”. É que Geni não era apenas bode de expiar o descontentamento alheio, a insatisfação com a própria vida que faz perseguir os pequenos detalhes e defeitos desconfortáveis dos outros e explorá-los e espicaçá-los até o constrangimento e a dor. Geni Alves era um homem. O nome de um homem perfeitamente comum que sentia ter uma vida desagradavelmente banal.
Viajava muito, de A a Z do país.

Freqüentemente de Guarulhos a Goiânia. Era representante comercial de uma empresa de produtos farmacêuticos com sede em Anápolis. Detestava aeroportos. Achava triste o espetáculo de chegadas e partidas, os rituais de viagem e passagem. Não havia para ele nenhuma imagem tão desoladora quanto a de pessoas arrastando ou sendo arrastadas por suas malas. Talvez porque tivesse sido, desde bebê, transportado de um lugar a outro como uma mala sem alça.

Filho de pai desconhecido, ignorado ou nunca sabido, perdeu a mãe aos três meses, num mês de agosto. Foi passando de uma casa a outra, como um fardo, de uma tia a outra, feito um saco de linhagem, de uma cidade a outra, para os braços de parentes progressivamente distantes, para lugares cada vez mais afastados. E aterrissou em Goiânia, o oco ou grito preso na garganta do mundo.

E depois dos vinte anos, quando passou a trabalhar como representante, o Aeroporto Santa Genoveva era para a ele o lugar que mais se parecia com os lares que não conhecera. Com sua vida de hóspede e de caixeiro viajante, não arranjara nenhuma mulher que o esperasse retornar, sem abrigar o encanador ou o eletricista dentro do armário. Era assim que estava solteiro aos quarenta anos.

Não bastasse o horror a essa vida que o escolhera a ele, Geni tinha enorme azar em suas viagens. Sua bagagem sempre extraviava. O detector de metais se sentia atraído por sua maleta de mostruários e ele era obrigado a constantes revistas na mala de cuecas sujas. Era vítima de overbooking regulares. Seu assento era comumente ocupado por alguém que se enganava sobre o número, mas que teimava em não admitir o erro. Quando não era perseguido por nenhum desses azares, ou o seu companheiro de viagem era espaçoso em demasia, ou um tipo exótico de papagaio, ou nunca havia ouvido falar em uma invenção chamada desodorante.

Esperou, pois, o pior quando anunciaram seu nome no aeroporto de Guarulhos. Senhora Geni Alves, favor comparecer ao balcão da companhia G. O colega de trabalho que viajava com ele olhou-a com deboche. Como já estava acostumado a ser confundido com uma mulher, foi até o balcão para pagar antecipadamente mais um dos seus possíveis muitos pecados. Eis, porém, que daquela vez não haviam errado. Ali estava uma mulher também de seus quarenta anos, cabelos levemente alourados e um sorriso, meu deus, um sorriso que parecia ser pra ele. Era a sorte que até então nunca havia lhe sorrido.

Ela também se chamava Geni Alves, filha de pai desconhecido, ignorado ou nunca sabido. Embarcariam para o mesmo lugar, Goiânia, e graças aos nomes idênticos, tinham dado a ela sua mesma poltrona: 8G. O sistema não estava preparado para lidar com homonímias. Para a companhia G, eram a mesma pessoa. E em breve quase se tornariam. Mas que não se preocupassem. Esperassem um pouco, que seriam acomodados lado a lado no próximo vôo – embarque que trataram de perder, entretidos num café de coincidências e confidências. Ah, os lugares imprevistos do amor! E os filhos dos amores improváveis, mas nunca impossíveis: Genivaldo e Efigênia!