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19-06-2006

Mãos que viram flores

medium_IMG_2458.JPG Colher marias-sem-vergonha e fazer das pétalas, lilases e brancas, pontiagudas unhas, eram uma das minhas alegrias preferidas. Pregá-las com cuidado e um bom cuspe, com um carinho que nunca teria qualquer manicura no futuro de esmaltes, flores pintadas e felicidades postiças. A arte estava em pintar primeiro a mão canhestra e então a direita, sem que um único dedo se descolasse ou se desfizesse. E destreza maior era pentear depois os cabelos com elas. Ofício engenhoso demais para quem não ousava sequer equilibrar-se no guidão do velocípede. Para quem caía, dobrando-se sobre as próprias pernas, como uma égua ou goiaba velha, ao menor ralho ou rajada de chuva. Muito molenga, demais manteiga-derretida, excesso de contemplativa, diziam. Minha infância foi de plantas à-toa, de marias-vagabundas; de colchão de noiva, o nome curioso do meu sono espinhoso e irrequieto; de flores amarelas que expeliam um leite secreto e que eu secretamente espremia no seio em promessa, como se amamentasse filhos e fantasias. Fiz “conzinhadinhas” de flores em fogões de tijolo e diminutivos de panelas. Aliás, todo esse delicioso mundo em miniatura, freqüentado pelas crianças tímidas ou desajeitadas, pelos anões e míopes definitivos, contemplado das gramas e capins em que me deitava, enfeitada por picões e carrapichos. Eu me divertindo com a vida difícil das pequenas criaturas. Eu fazendo florestas de liquens para a minha boneca Tutuca. Ela tinha um corpo desapontado como o meu. Não era Suzi. E as Barbies, para minha sorte e para alívio da poesia, nem tinham nascido. Não havia equivalentes masculinos para as bonecas ou carros de plástico cor-de-rosa, ou a plástica das casas, corpos e caras. Os namorados delas eram garrafas de coca-cola tamanho-família; os automóveis, sapatos; a sapateira, um lindo prédio de apartamentos em endereço nobre, onde eu nunca moraria. Eu com meu talento precoce ou inclinação fatídica, tão cedo revelado, para a arquitetura... Por exemplo, quando me ensinaram, na pré-escola da dona Perpétua, que o primeiro passo para se construir uma casa era fazer a planta, aprendi, para sempre e de modo irreversível, que todo desenho de casas deveria começar por uma árvore. Mas por que só uma planta? – eu pensava, até ser introduzida no fabuloso mundo dos plurais e sentidos figurados, e descobrir, na engenharia das frases, minha verdadeira vocação para a vida interrompida. Por esse mesmo tempo, criei cemitérios para passarinhos e pintos mortos. Confeccionei cruzinhas de galhos para seus cortejos fúnebres. Lavei e areei na bica – tendo ao fundo a música ambiente dos gemidos do monjolo – centenas de pedras brilhantes e cacos de louça colorida. Encerrei nos cofres cavados no caule das bananeiras todos esses tesouros da ingenuidade e da perplexidade dos olhos recém-abertos, juntamente com uns olhinhos de lambari que era costume guardar em caixas de fósforos com talco, como pequenas preciosidades, já foscos e fedidinhos. Ainda bem que o quintal era vasto e minha mãe ignorava o que eu fazia lá no fundo, sob a sombra dos pés de abacate. E ainda ignora o que faço com meu perfume de dama-da-noite, no fundo dos corredores, com minhas mãos, ainda pintadas de maria-sem-vergonha, que oferecem flores vivas para estranhos, no meio da rua, e flores secas, guardadas no meio dos livros, para desconhecidos.

Comentários

Caríssima Cássia Fernandes,

Cheguei até aqui via Flickr, onde tb tenho uma iniciante página. Adorei tudo que li. Fiquei feliz. Sou agente literário. Quando você tiver um livro para publicar, não deixe de me procurar. É difícil encontrar — por acaso, claro — gente que escreva bem, com graça e inteligência. Parabéns! Abraço cordial da,
ana maria santeiro

Escrito por: ana maria santeiro | 10-07-2006

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