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30-08-2007

Perícia

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Hoje, para expressar-se, é requerida muita perícia, cirúrgica e lingüística. Um caso infeliz de expressão pode redundar em caso de polícia e detenção. Principalmente se tratamos de minorias, tão amplo conceito, criado para combater preconceitos e reparar injustiças. Qualquer um se enquadra na categoria dos humilhados e ofendidos, a ser compensados e protegidos, até frascos e comprimidos. Nós mulheres, por exemplo, somos minoria embora sejamos maioria. Vá entender isso. Atinar, não atino, mas bem que me beneficio. Não interessa se por quota, o importante é passar pela porta. Do Palácio.
Outro dia, moradora de um prédio no Rio se estranhou com o vizinho, que, por acaso era síndico. Entre rusgas e impropérios, xingou o cara de invertido, assim com outros adjetivos que não emprego por pundonor do leitor e sobretudo por temor de processo. Gritou muito bem reforçado que ele transformava em lazer a área de serviço.
A briga foi parar nos tribunais. O juiz, sensível e politicamente correto, deu ganho ao ofendido, afinal, o que se guarda na garagem só ao dono interessa e ele não estava ali pra julgar se isso ou aquilo é preferência ou desvio. Mandou a ofensora desembolsar seiscentos reais. Ela, porém, inconformada, queria provar não estar enganada – não se tratava de calúnia ou difamação, mas de pura verdade – solicitou uma perícia na parte de trás do vizinho. Acabou pagando mais. Oito mil reais. E um mico.
Como o mico não foi comigo, lembrei-me da onda do politicamente correto, que já deu tombos em amigos, cá bem perto. Há certo tempo, um colega jornalista foi surpreendido por um comunicado raivoso pregado nas paredes da assessoria de comunicação onde trabalhávamos. “Fulano, converse comigo sobre isso”! Uma seta pontuda apontava para o título de uma nota que seria enviada aos jornais no dia. Onde se lia: tapete preto. Sentimos, nós, os colegas, um estremecimento de medo.
O chefe sicrano estava fulo da vida. Como um representante legítimo das minorias coloridas, não aceitava aquela expressão pejorativa sobre raça.
“Mas a nota fala sobre o asfalto pretinho e novinho que chega às ruas da cidade. Um tapete de tão liso”.
“Pois, nós, por aqui, não admitimos expressões homofóbicas ou racistas. Preto é uma palavra que tem sempre uma conotação discriminatória e ofensiva. Como a situação está preta! Há algo mais preconceituoso que isso? E o buraco negro? E o gato preto que passa debaixo da escada?!”
O título foi cortado. Uma injustiça datada de séculos foi reparada.
Eu, que não queria pertencer à minoria dos desempregados, enfiei meu pretinho básico no saco e desde então cortei a palavra preto de meus textos e dicionário. Aqui, só a utilizo em intenção crítica.
Falar e escrever hoje em dia é atividade de risco, é operar com precisão a língua, proceder a melindrosas cirurgias. Além de andar com bisturi afiado, tenho uma pinça bem aguçada em meus ouvidos. Ai, se no meio do tráfego, algum porco chauvinista grita: minha tia, vai pilotar fogão! Ah, se não ajeito a minha vida, se não lhe arranco o fígado e um milhão. E cozinho o sutiã na sua cara.

20-08-2007

BLOGAGENS

Perguntinhas que não querem calar.

1 - Castigo de Deus
Por que esses artistas famosos, já consagrados, aceitam gravar comerciais de qualquer tipo de produto? Não acredito que seja simplesmente por dinheiro. Alguns deles já ganham milhões, com seus discos e shows. Por exemplo, há o caso de um famoso cantor da terra, que fazia comerciais para uma financeira, estimulando os velhinhos a se endividar com aqueles malditos empréstimos. O cara já tem uma fortuna. Duvido que precise ganhar mais grana. Onde enfia a tal da responsabildade social? Será que ele não pensa no poder que sua imagem tem sobre as pessoas, que anunciando determinados produtos pode arruinar a vida delas? É por isso que digo, quando vejo certos cantores, principalmente sertanejos, reclamarem dos prejuízos com a pirataria, que isso acontece "por castigo de Deus". Quem mandou encherem os ouvidos da gente com tanta porcaria? E não falo apenas da música.
Há também o caso de um ator aqui da terrinha, que já vive no Rio há algum tempo, mas que volta e meia anda na cidade. Pois está no ar um comercial em que anuncia as vantagens fantásticas de mais um maravilhoso loteamento. Mais um? E esses loteamentos, sabemos bem o que são.

2 - Nossa nudez, nossa desfaçatez.
Por que a Playboy sempre convida para posar nas suas páginas mulheres envolvidas com algum tipo de escândalo? Já aconteceu daquela vez com a fogueteira do Maracanã. Agora, novamente, com a tal da Mônica Veloso, envolvida no escândalo Renan Calheiros. Tudo bem, eu sei, revista de mulher pelada traz sacanagem, não precisa se sujeitar a qualquer regra moral, mexe com o que há de mais interdito na imaginação, com as taras, com as fantasias. E, além disso, só tem compromisso com o próprio lucro.
Mas - ponte que partiu! - dessa vez a peladona está envolvida em um escândalo político. Quem vir a bonita nas revistas vai querer .... vocês sabem o quê, mas a sensação que tive quando fiquei sabendo que ela iria sair na Playboy é que a revista está mandando o Brasil se fuder!
Será que em outros países também ocorre o mesmo? Mulheres envolvidas em escândalos políticos vão parar peladas nas páginas de revistas? A Mônica Lewinsky, que não fez um filho, mas fez muitas outras cositas com o Bill Clinton, que eu saiba, não saiu nua nas revistas dos Estados Unidos. Parece que o que fez foi abrir a sua própria loja de bolsas. O que não deixa de ser simbólico.
A impressão que tenho, portanto, é de que no Brasil, até nossas revistas de sacanagem refletem a sacanagem vigente. Até nossa nudez é um sinal da nossa desfaçatez. Revista pornô não precisa ter moral. A moralidade é plural. Mas a ética, essa, qualquer um, pessoa, revista, instituição, precisa ter. Ética é uma só.

18-08-2007

Canjinha II

50bfc88f233905a5e0cba2159f135ae2.jpg Quando menina-lamparina lá em Pontalina, minha mãe me arrastava às procissões – coroar, não coroei a santa –, não pertencia a tamanha importância, integrava a massa infantil das multidões. Assim mesmo atirava pétalas de rosa à imagem e pisava tapetes de flores na passagem. Cheia de contrariedade, de desfazer bordados com perfume e cuidado, nas calçadas tantas vezes descalças, elas e eu. Mas o que mais me aborrecia é que inveja tinha de não me vestir de anjo, de camisolão, com que iam os meninos da diretoria e primeiro escalão. Camisolões azuis celestes, rosa espinho ou amarelo bebê e asas brancas de doer! Verdadeiro buquê de serafins. E eu perguntava a mamãe por que diabos não tinha asas eu só pra mim? Ela dizia, pra sarar inveja, que anjinhos pagavam promessa. Seus pais os vestiam assim, porque contraíram doença, mas por reza e penas da santa, não tinham virado canja de anjo lá no céu. Eu devia me conformar, portanto. Até me dava deliciosa morbidez saber que, por sorte, de ser anjo não chegara minha vez. Porém, oh, obsessão! Figuras de anjos, caídos ou não da escada, perseguiram-me vida afora como Legião. Talvez por isso tenha me tornado encapetada, pirracenta, bicho do mato. Se não posso ser um anjo, serei o contrário. Se asas não tenho, pegarei o cão pelo rabo.E se aos pais dei trabalho, mui bom emprego fizeram das chineladas. Arranjaram até um velhinho rezador de cobras e capetas pra me benzer contra as rabugices de criança envelhecida antes da vida. Eu me escondia atrás da casa, de telha que bem não bate, debaixo do sofá de napa e na capa de batman do pé de abacate. Quanto mais o bruxo passava o raminho de arruda na minha cara, mais birrenta me tornava. E com mais raiva. E mais a velhice se cravava lá no fundo da criança que eu ainda aparentava. Como eu blasfemei. Como meus demônios se esgoelavam. Quanto me custou exorcizar mais tarde a infância que perdi na primeira idade. Incalculáveis terapias e cápsulas coloridas, alegrias capciosas e outras heroínas-mulheres-maravilhas da moderna medicina seriam necessárias para arrancar a criança endiabrada. Tudo tão mais simples seria se, em vez de reza, me dado tivessem um par de lápis. Com eles eu teria, de um só traço, asas e harpa. Nem carecia de caderno. Que sobre os muros caroquentos de igrejas ou cemitérios, eu riscaria minha baba verde e anjos eternos. Agora eu os risco. Toda sorte de criaturas aladas trago comigo. Reproduções cafonas nas paredes do quarto. Cerâmicas, miudezas, quinquilharias. Falanges inteiras em surubas e concertos oníricos. Penas que voam quando ventam as cortinas e dobram-se os sinos dos travesseiros. E nos textos, criaturas, menos humanas do que divinas. Porém, com nada se conforma uma criança e até hoje tenho esperança de carregar asas também.Que os anjos tão cedo não digam amém. Hoje sei que não se compra indulgência, nem com penas se paga penitência, ou lugar ao lado direitíssimo do deus pai. Mas as asas, para sorte e sem risco de morte minha, sem procissão e ave-maria, essas posso comprar, em dez vezes e sem ex-votos, no mastecard. Na lojinha de fantasias ali da esquina, onde de tudo se pode ser e trajar, e onde se ouve de chusmas o linguajar.