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18-08-2007

Canjinha II

50bfc88f233905a5e0cba2159f135ae2.jpg Quando menina-lamparina lá em Pontalina, minha mãe me arrastava às procissões – coroar, não coroei a santa –, não pertencia a tamanha importância, integrava a massa infantil das multidões. Assim mesmo atirava pétalas de rosa à imagem e pisava tapetes de flores na passagem. Cheia de contrariedade, de desfazer bordados com perfume e cuidado, nas calçadas tantas vezes descalças, elas e eu. Mas o que mais me aborrecia é que inveja tinha de não me vestir de anjo, de camisolão, com que iam os meninos da diretoria e primeiro escalão. Camisolões azuis celestes, rosa espinho ou amarelo bebê e asas brancas de doer! Verdadeiro buquê de serafins. E eu perguntava a mamãe por que diabos não tinha asas eu só pra mim? Ela dizia, pra sarar inveja, que anjinhos pagavam promessa. Seus pais os vestiam assim, porque contraíram doença, mas por reza e penas da santa, não tinham virado canja de anjo lá no céu. Eu devia me conformar, portanto. Até me dava deliciosa morbidez saber que, por sorte, de ser anjo não chegara minha vez. Porém, oh, obsessão! Figuras de anjos, caídos ou não da escada, perseguiram-me vida afora como Legião. Talvez por isso tenha me tornado encapetada, pirracenta, bicho do mato. Se não posso ser um anjo, serei o contrário. Se asas não tenho, pegarei o cão pelo rabo.E se aos pais dei trabalho, mui bom emprego fizeram das chineladas. Arranjaram até um velhinho rezador de cobras e capetas pra me benzer contra as rabugices de criança envelhecida antes da vida. Eu me escondia atrás da casa, de telha que bem não bate, debaixo do sofá de napa e na capa de batman do pé de abacate. Quanto mais o bruxo passava o raminho de arruda na minha cara, mais birrenta me tornava. E com mais raiva. E mais a velhice se cravava lá no fundo da criança que eu ainda aparentava. Como eu blasfemei. Como meus demônios se esgoelavam. Quanto me custou exorcizar mais tarde a infância que perdi na primeira idade. Incalculáveis terapias e cápsulas coloridas, alegrias capciosas e outras heroínas-mulheres-maravilhas da moderna medicina seriam necessárias para arrancar a criança endiabrada. Tudo tão mais simples seria se, em vez de reza, me dado tivessem um par de lápis. Com eles eu teria, de um só traço, asas e harpa. Nem carecia de caderno. Que sobre os muros caroquentos de igrejas ou cemitérios, eu riscaria minha baba verde e anjos eternos. Agora eu os risco. Toda sorte de criaturas aladas trago comigo. Reproduções cafonas nas paredes do quarto. Cerâmicas, miudezas, quinquilharias. Falanges inteiras em surubas e concertos oníricos. Penas que voam quando ventam as cortinas e dobram-se os sinos dos travesseiros. E nos textos, criaturas, menos humanas do que divinas. Porém, com nada se conforma uma criança e até hoje tenho esperança de carregar asas também.Que os anjos tão cedo não digam amém. Hoje sei que não se compra indulgência, nem com penas se paga penitência, ou lugar ao lado direitíssimo do deus pai. Mas as asas, para sorte e sem risco de morte minha, sem procissão e ave-maria, essas posso comprar, em dez vezes e sem ex-votos, no mastecard. Na lojinha de fantasias ali da esquina, onde de tudo se pode ser e trajar, e onde se ouve de chusmas o linguajar.

Comentários

Prefiro esse, ao primeiro.

Escrito por: Leonardo | 20-08-2007

Amei o seu texto. Me fez lembrar de quando eu queria ser baliza dos desfiles do colégio, mas nunca conseguia passar nos testes. Não sei virar estrela, não sei abrir espacate. Sou desajeitada. Minha melhor amiga era baliza todos os anos. Eu tocava na fanfarra, era o mais perto que eu conseguia chegar. Mas, enquanto ia lá com meu uniforme de soldadinho, morria de inveja das meninas de vestidinho rodado e coques no cabelo... era para elas que a fanfarra tocava.
Grande beijo, e parabéns!

Escrito por: Caroline Montagner | 29-08-2007

do flickr vim visitar o blog
e me encantei com seus textos

e curti as opinioes sobre os assuntos

(pacatatu)

Escrito por: ricky | 31-08-2007

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