Ok

By continuing your visit to this site, you accept the use of cookies. These ensure the smooth running of our services. Learn more.

30-01-2011

Gato de pensão

 

gatinho2.jpg

 

Estou tão carente

como um filhote de macaco,

como um gato de pensão.

Ando grudando ao pescoço

da primeira que passa.

Mas nenhuma delas

me cata os piolhos,

como você me catava.

 

Vivo metido debaixo das mesas

dos restaurantes,

embaraçado às toalhas,

roçando a penugem das pernas

das mulheres anônimas.

Mas nenhuma delas me chuta,

como você me chutava.

 

Reviro as latas de lixo.

Mio sobre os telhados.

Faço canção sertaneja

e até serenata.

Mas você não chama a polícia.

Não joga um balde de água,

nem atira tomates.

 

Me diz o que falta

pre ter você de volta,

para chamar sua atenção.

Já plantei bananeira.

Já virei cambalhota.

Vivo de quatro.

 

Se é a última prova?

Quer que eu me arraste?

Pois vai então:

- do chão não se passa -

o último bolso

de minha última calça.

 

 

bolso.jpg

Como me disse uma vez meu amigo, o escritor Itamar Pires, os poemas de "Escritos para uso pessoal e doméstico", além de pessoais e domésticos, contam também pequenas histórias de nossas lutas inglórias.

 

 

 

28-01-2011

Bombom

 

mulher_comendo_bombom.jpg

 

Querida,

coma!

Não é só botar silicone

que a dor some.

Não é fazendo lipoaspiração

que você terá cintura fina

e o amor daquele homem.

O mundo está cheio de mulheres magras,

lindas e infelizes.

Fizeram plástica na barriga,

mas restam invisíveis cicatrizes,

amores indigestos, filhos

e o grande estômago feminino,

sempre grande,

inexoravelmente vazio.

 

A beleza não nos protege da solidão

ou dos chifres.

E depois de uns certos anos

e homens, amiga,

a gente sabe

que não vai virar um lindo cisne.

E aceita finalmente

dividir a conta, o bife

nossas penas brancas,

mas não se agacha e acha

que nunca vai achar um ninho.

 

E daí? E nossa angústia metafísica?

Nem com botox ou outras toxinas

podemos preencher os sulcos

que o tempo cava em nossas vidas.

 

Então, querida, coma:

o bombom, o pão com salame,

um pedaço de cada homem,

a juventude que resta ainda.

Coma, beije, beba, lamba

a sua bomba

de chocolate, refrigerante

e deixe o nutricionista,

o endocrinologista,

a capa de revista

morder a língua

de raiva, inveja

e de saliva.

 

Outra da série "Escritos para uso pessoal e doméstico", da qual decidi me desfazer, já que não posso desfazê-la.

 

marca.jpg

 

19-01-2011

Amostra grátis

 

w Escritos.jpg

 

De graça até injeção na testa.

Até entrar na fila pra tomar cascudo.

Num mundo em que se vende tudo,

qualquer tantinho de afeto é lucro.

 

Meu corpo é amostra grátis.

Não o recuse.

Se corpo é coisa barata,

que se encontra no meio da rua,

faça um favor a si mesmo.

Seja cristão.

Aceite com bondade e resignação

a migalha que te dão,

que assim também te aceitarão

no paraíso.

 

Num mundo em que tudo é comércio,

até bala perdida e de raspão,

em tiroteio de quadrilha,

é achada com a maior alegria.

 

Por isso com o orgulho,

o velho engano,

é preciso todo o cuidado.

Muitos homens, sem saber,

hospedaram anjos.

 

E  o amor não é o mercado.

Não é porque estou dando

que quer dizer

que estou sobrando.

Por que dar de grátis?

 A história recente da escritora Chantal Dalmass, que está dando, no meio da rua, seus livros que a editora Planeta iria queimar,  (http://bit.ly/epdYNQ) me fez ter vontade de publicar aqui esse poema   e relembrar a encalhada série "Escritos para uso pessoal e doméstico", que lancei em 2005. Depois de muito labutar para publicar o projeto - patrocinado pela lei municipal incentivo à cultura, me cansei de pouco mourejar para colocar as caixinhas à venda em livrarias ou outro qualquer lugar que se dignasse.

A má-vontade dos que recebiam a mendicante escritora era sempre a mesma. A justificativa de que o catálogo e as caixinhas ocupavam muito espaço era razoável. As grandes redes de livraria recusavam a venda porque a mendicante e estúpida escritora não se lembrara de colocar no "produto" o código de barras, ou simplesmente, claro, porque o "produto", meio comercial, meio artesanal, não interessava.

Eu me cansei logo - devo dizer. A perseverança nunca foi uma de minhas poucas virtudes. Abrandei com o tempo, mas ainda vivo no bom estilo pavio curto, fogo de palha e chute no balde. E as duas verdades são as seguintes: primeira, o escritor, o artista, o criador, já padece demasiado concebendo, gestando, parindo e na pior das hipótes obrando sua obra, para  ter que se ocupar de vendê-la. Quem cria não presta pra vender. Não dá conta. Sofre. Sente-se envergonhado e humilhado.  Segunda: se o escritor não tiver uma boa editora, com uma boa estrutura de distribuição e a divulgação adequada, provavelmente vai encalhar e vai deprimir. É claro que existem os sortudos,  os brilhantes, os independentes, mas esses são a exceção.

 

wEscritos 3.jpg

 

 O projeto gráfico é o que salva - Logo que esbarrei nas primeiras dificuldades para comercializar os escritos para uso pessoal e doméstico, larguei de mão. O tempo da paixão e do entusiasmo já tinha passado. Eu já estava naquela fase do relacionamento do criador com a criatura em que mesmo as maiores qualidades se transformaram em mostruosos defeitos.  Esqueçam ou queimem tudo o que escrevi. Aquele projeto não ficou mesmo bom. A designer gráfica, Pollyana Duarte, era brilhante. A marca ficou linda, mas a impressão ficou péssima. E o formato não funciona. As caixas são pouco práticas, difícies de abrir, de fechar, não são duráveis. E mais, o mais difícil de confessar: os textos não têm qualidade literária. Pronto, falei! São no máximo engraçadinhos, risíveis e só!

Ademais, publiquei, me livrei, gozei, acabou o tesão, adieu! É claro que há sempre uma sobra de ternura, até uma certa piedade por aquilo que a gente escreveu, um filho feio e defeituoso. Então, relutei em botar fogo ou em fingir esquecer por aí, nas esquinas, nas praças, na famosa técnica do livro livre, como fiz com meu primeiro e único até hoje romance "Cartas que não te escrevi". As centenas de caixinhas estão até hoje no meu armário, um verdadeiro entulho, amarelando, uma espécie de diploma de incompetência e fracasso, nos dias em que estou bem dramática; ou um simples experimento que não deu certo e do qual preciso me livrar, nas fases pragmáticas, mas que me inspiram uma preguiça sem fim (deixa pra depois!).

Certamente, dia desses vou me animar a me livrar dessas caixinhas. Não, não vou queimá-las. Não porque ainda lhes tenha um grande amor ou esperança de alguma repercussão literária, mas porque sou contra o desperdício. Elas ainda podem servir para algo, para embalar um presente (sim, são embalagens até bonitinhas) e até mesmo para a reciclagem. Vou distribuí-las, se não no corpo a corpo com o leitor, como está fazendo Chantal, anonimamente, riscando aquela parte da caixinha em que havia meu primeiro nome...