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19-01-2011

Amostra grátis

 

w Escritos.jpg

 

De graça até injeção na testa.

Até entrar na fila pra tomar cascudo.

Num mundo em que se vende tudo,

qualquer tantinho de afeto é lucro.

 

Meu corpo é amostra grátis.

Não o recuse.

Se corpo é coisa barata,

que se encontra no meio da rua,

faça um favor a si mesmo.

Seja cristão.

Aceite com bondade e resignação

a migalha que te dão,

que assim também te aceitarão

no paraíso.

 

Num mundo em que tudo é comércio,

até bala perdida e de raspão,

em tiroteio de quadrilha,

é achada com a maior alegria.

 

Por isso com o orgulho,

o velho engano,

é preciso todo o cuidado.

Muitos homens, sem saber,

hospedaram anjos.

 

E  o amor não é o mercado.

Não é porque estou dando

que quer dizer

que estou sobrando.

Por que dar de grátis?

 A história recente da escritora Chantal Dalmass, que está dando, no meio da rua, seus livros que a editora Planeta iria queimar,  (http://bit.ly/epdYNQ) me fez ter vontade de publicar aqui esse poema   e relembrar a encalhada série "Escritos para uso pessoal e doméstico", que lancei em 2005. Depois de muito labutar para publicar o projeto - patrocinado pela lei municipal incentivo à cultura, me cansei de pouco mourejar para colocar as caixinhas à venda em livrarias ou outro qualquer lugar que se dignasse.

A má-vontade dos que recebiam a mendicante escritora era sempre a mesma. A justificativa de que o catálogo e as caixinhas ocupavam muito espaço era razoável. As grandes redes de livraria recusavam a venda porque a mendicante e estúpida escritora não se lembrara de colocar no "produto" o código de barras, ou simplesmente, claro, porque o "produto", meio comercial, meio artesanal, não interessava.

Eu me cansei logo - devo dizer. A perseverança nunca foi uma de minhas poucas virtudes. Abrandei com o tempo, mas ainda vivo no bom estilo pavio curto, fogo de palha e chute no balde. E as duas verdades são as seguintes: primeira, o escritor, o artista, o criador, já padece demasiado concebendo, gestando, parindo e na pior das hipótes obrando sua obra, para  ter que se ocupar de vendê-la. Quem cria não presta pra vender. Não dá conta. Sofre. Sente-se envergonhado e humilhado.  Segunda: se o escritor não tiver uma boa editora, com uma boa estrutura de distribuição e a divulgação adequada, provavelmente vai encalhar e vai deprimir. É claro que existem os sortudos,  os brilhantes, os independentes, mas esses são a exceção.

 

wEscritos 3.jpg

 

 O projeto gráfico é o que salva - Logo que esbarrei nas primeiras dificuldades para comercializar os escritos para uso pessoal e doméstico, larguei de mão. O tempo da paixão e do entusiasmo já tinha passado. Eu já estava naquela fase do relacionamento do criador com a criatura em que mesmo as maiores qualidades se transformaram em mostruosos defeitos.  Esqueçam ou queimem tudo o que escrevi. Aquele projeto não ficou mesmo bom. A designer gráfica, Pollyana Duarte, era brilhante. A marca ficou linda, mas a impressão ficou péssima. E o formato não funciona. As caixas são pouco práticas, difícies de abrir, de fechar, não são duráveis. E mais, o mais difícil de confessar: os textos não têm qualidade literária. Pronto, falei! São no máximo engraçadinhos, risíveis e só!

Ademais, publiquei, me livrei, gozei, acabou o tesão, adieu! É claro que há sempre uma sobra de ternura, até uma certa piedade por aquilo que a gente escreveu, um filho feio e defeituoso. Então, relutei em botar fogo ou em fingir esquecer por aí, nas esquinas, nas praças, na famosa técnica do livro livre, como fiz com meu primeiro e único até hoje romance "Cartas que não te escrevi". As centenas de caixinhas estão até hoje no meu armário, um verdadeiro entulho, amarelando, uma espécie de diploma de incompetência e fracasso, nos dias em que estou bem dramática; ou um simples experimento que não deu certo e do qual preciso me livrar, nas fases pragmáticas, mas que me inspiram uma preguiça sem fim (deixa pra depois!).

Certamente, dia desses vou me animar a me livrar dessas caixinhas. Não, não vou queimá-las. Não porque ainda lhes tenha um grande amor ou esperança de alguma repercussão literária, mas porque sou contra o desperdício. Elas ainda podem servir para algo, para embalar um presente (sim, são embalagens até bonitinhas) e até mesmo para a reciclagem. Vou distribuí-las, se não no corpo a corpo com o leitor, como está fazendo Chantal, anonimamente, riscando aquela parte da caixinha em que havia meu primeiro nome...

 

 

Comentários

Tadinha de voce ser artista!! Eu compro. Reserva aih umas pra mim. Eu compro nao por pena, mas pelo reconhecimento da labuta, do esforco e reconhecimento do seu talento. E nao me importo com a falta de qualidade literaria, que nao vou entender assim, mas so como arte de uma fase anterior.Tem artista que so acha bom o fruto atual da maturidade. Tira a Cassia da Lucivania, mas nao se pode tirar a Lucivania da Cassia.Pois eu nao quero de presente nao. Eu compro mesmo, convicta!

Escrito por: niely | 19-01-2011

"Meu corpo é amostra grátis.

Não o recuse."

Lindo, Cássia!

Um beijo de graça para você, Chantal.

Escrito por: Chantal Dalmass | 27-01-2011

"Quem cria não sabe vender."

Disse tudo!

Me identifiquei demais com o post todo. Entendo perfeitamente e sei como é. Espero que um dia você se anime. O lixo e a fogueira são fins crueis demais para coisas que criamos com tanto amor, com tanto de nós.

Bjs!

Escrito por: Lilian | 27-01-2011

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