24-05-2007
Mula-manca
Anita gosta de mula-manca. Não das azêmolas doentes e de cascos carcomidos, por aí claudicantes. Gosta da mula-manca mesmo, esse feitio de blusa que nós mulheres usamos e cuja designação, dizem, surgiu na Roma Antiga. Parece que as mulheres nobres é que assim se vestiam: o corte diagonal destacando a linha dos seios. Em italiano, era a “nulla manga”, sem manga. Sabe-se lá por que motivos e analogias – a ela o modelo não lembra nunca uma alimária coxa – por aqui ficou desse jeito conhecida. Mas a razão principal da preferência de Anita é que esse corte para ela evoca as Amazonas sem freio de um só seio. Conta a mitologia que tal raça de mulheres amputava um dos peitos para melhor portar as armas. Quando Anita veste esse modelo, sente-se guerreira, transportada para antes das patrícias romanas, para os tempos míticos da Grécia Clássica, pronta pra ver a vida e seus imprevistos, abismos e emboscadas. O fato é que em matéria de moda, em assuntos de vestir e de despir, prefere as assimetrias, o pedaço de pano dissonante que não sabe dizer a que veio, o retalho costurado a esmo, que vai por um atalho e nunca sai direito. Não é de exatidão nem de harmonia. E por isso mesmo, por causa de suas irregularidades e idiossincrasias, Anita se tornou uma famosa estilista no Brasil, dessas que são consultadas e escrevem editoriais de moda para revistas femininas. Que aparecem nos programas de tevê, dando dicas sobre como se vestir e a elegância do bem viver. E toda vez que surge em uma foto de revista, em um quadro de moda e de beleza, está ela ali de mula manca, o dorso heróico sob um tecido leve e solto, pelo qual mesmo assim se percebe um discreto desnível entre um lado e outro. O que suas leitoras e espectadores ignoram é que ela não se veste dessa forma apenas por amor aos próprios truques, não somente para realçar os ombros de nadadora e o colo de monalisa. Anita é uma bela mulher que nunca autoriza ser vista completamente nua, que só permite que os homens lhe toquem abaixo da linha imaginária da cintura. E sempre numa sala escura, em horas adiantadas e absurdas, sob a sombra rubra de encarnados abajures. E sempre por cima, de crina solta, cavalga com esporas sangrando a boca de suas vítimas. O câncer lhe amputou um dos seios, ainda quando eles despontavam, túrgidos, para armá-la de obstinação, orgulho e de grandeza. E com sua dignidade de Amazona, ela se recusou a pôr as próteses do despeito. O médico lhe aconselhou mesmo que não fizesse isso: sob as próteses, novos brotos de tumores se escondem. E se a força e a feminilidade de uma mulher não estão nos peitos, Anita sabe onde. (A história de Anita foi apenas a primeira de uma série de histórias que irei contar sobre as estranhas e complexas relações que as mulheres têm com suas vestes mulas-mancas, tomara-que-caia e outros feitios de pano, e seus seios comprimidos em sutiãs tiranos ou expandidos em grandes bolsões de silicone.) Crônica publicada dia 25 de maio em O Popular.
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