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10-02-2012

A planta da casa

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           Assim que precipitadamente alfabetizada na escolinha da dona Perpétua em Pontalina –  que nome e que figura nada encantadora a da primeira professora de uma criança de 5 anos – aprendi algo que me fez descobrir precocemente meu talento para a arquitetura. A primeira de minhas possíveis vocações. Foi certamente no livro de Estudos Sociais. Naquele tempo tínhamos aulas de Educação Moral e Cívica, Educação Artística e um monte de outras disciplinas cujos nomes já não se usam mais. Pois li em  um desses livros e aprendi que “a primeira coisa que se deve fazer ao construir uma casa é a planta da casa.”

          Esse conhecimento marcou profundamente meu espírito. Assim, como boa e aterrorizada aluna que fui desde o princípio, impus-me o rigoroso dever de sempre, quando começava o desenho de uma casinha no papel, por obrigação ou divertimento, desenhar uma planta. E não era uma planta qualquer, era uma dessas plantas tipo folhagem. Ficava intrigada – é certo – e por muito tempo me questionei por que tinha que ser uma planta e não várias plantas. Mas logo me apaziguava com a ideia de que casas sem plantas eram lugares tristes, desérticos. Era mesmo natural que alguém, quando fosse habitar um lugar, antes povoasse o ambiente de verde, que esparramasse folhagens, árvores, afinal, outra coisa que aprendi nesses primeiros livros era que “árvores são muito boas porque dão sombra, flores e frutos.”

           Falo sério. Não é chacota. Durante muito tempo da infância, sei lá quanto, fui fiel a esse ensinamento.  Desenhava sempre a primeira planta, como quem afina o lápis e o instrumento, depois esboçava casa e lá ia esparramando um sem fim de folhagens, flores e árvores em torno.

          Também não sei precisar quando se desfez esse meu engano, travestido de dever. Num dado momento, percebi que planta podia ser algo mais que um vegetal, mas um conjunto de traços com os quais só os iniciados, uma privilegiada casta chamada de arquitetos, definiam os espaços, a sala, a cozinha, os quartos de uma casa que ainda seria construída. A revelação, porém, se transformou logo num novo fascínio, pois eu ficava novamente intrigada ao tentar imaginar como ficariam aquelas linhas depois de erguidas em paredes. Não foi  também menor o meu entusiasmo quando, admirando as pequenas plantas dos folhetos que vendem casas e apartamentos,  procurava entender onde afinal seria a entrada, onde seriam colocados o sofá, a cama ou a mesa de jantar. Um mundo minúsculo de possibilidades. Um universo para ser habitado por pequenas bonecas de papel.

          Paralelamente a esse encantamento, o tempo foi me revelando que, além de uma enorme dificuldade para interpretar “plantas” –  virava e revirava os folhetos e a cabeça em busca de alguma lógica – (eu e meus problemas de percepção espacial que até hoje perduram ), eu nascera dotada de duas mãos esquerdas. Sim, duas mãos esquerdas. Embora destra, sempre fui uma canhestra. Meus desenhos eram péssimos. Minha caligrafia era péssima. Eu sempre levava bronca de minha mãe quando tinha que desenhar mapas para as aulas de Geografia. Minha relação com a régua e o compasso sempre foi marcada por um grande descompasso nas aulas de Geometria.


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           Uma hora me acabo - Não sei como não fui reprovada e sobrevivi a tudo isso. Mas o fato é que a descoberta da planta e de seus múltiplos sentidos foi substituindo meu interesse pelo fascinante mundo da arquitetura.  As palavras foram me seduzindo. As palavras são sempre um terreno muito sedutor e acolhedor para os “gauches”. Drummond que o diga. Desajeitados no mundo, incapazes de construir algo útil com as mãos, nós nos recolhemos a elas, aos livros, à convivência com os seres de papel e verbo.

         As palavras então eram polissêmicas, podiam ser manipuladas ora com um, ora com outro sentido. Podiam ser trocadas de lugar, o que lhes alterava profundamente o sentido. E entre elas eu me localizava, não ficava perdida. Era um espaço que eu compreendia e habitava apaziguada. Momentaneamente apaziguada, pois descobri assim que, em vez de vocação para a arquitetura, já que gostava e me arranjava bem com as palavras, era vocacionada para o jornalismo.

          E lá fui eu cursar Jornalismo, achando que isso me bastaria para me dar bem nessa área. Novo engano. Novo desapontamento. O jornalismo também não é terreno para a polissemia. No texto jornalístico, as palavras não podem ter múltiplos sentidos, ambiguidades, não podem se prestar a trocadilhos. Deve-se privilegiar a ordem direta, fazer cálculos precisos sobre o número de adjetivos, dispensáveis a maior parte do tempo. As palavras devem ser medidas com régua, números de espaços e caracteres. Não podemos nos dar ao luxo de figuras, firulas e flores. Não podemos dar margens a múltiplas interpretações e viagens poéticas. Devemos ser simples, concisos, objetivos, diretos.  Sujeitei-me. Já era tarde para descobrir e me enganar e me desenganar com uma nova vocação.

           Felizmente, há sempre à disposição da gente uma folha ou uma tela em branco onde a gente é que decide como e com que começar o desenho. Cumpro rigorosamente meu dever todos os dias, uso as palavras com parcimônia, meço, desidrato , disseco, muito atenta com a arquitetura das frases – elas não podem desabar em dubiedades e questionamentos. Depois ou durante os intervalos dessa labuta, me compartimento. Entrego-me. Respiro. Escrevo, livre, sem normas, sem freios, uma profusão de palavras: planta, casa , árvore, que venham, que virem uma cidade, uma floresta, que edifiquem e que desabem. Tem uma outra  vocação escondida aqui, eu suspeito, mas deixe, daqui a pouco, fica pra mais tarde. Sou apenas um esboço, uma planta, um projeto provisoriamente abandonado.  Um hora me construo. Uma hora me acabo.

 

 

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