01-02-2012
Prontos e a postos
Uma reflexão a partir do filme Inquietos de Gus Van Sant
Já viram como enterramos a morte em profundidades e distâncias, e só nos metemos a desenterrá-la e a exumá-la quando de algum modo ela nos chama? Nós a segredamos e segregamos. Eis a que me remeteu o filme Inquietos de Gus Van Sant, em exibição durante a Mostra O Amor, a Morte e As Paixões, no Shopping Bougainville. Mais adiante me explico.
Trata-se de um filme que aborda o amor e a morte. Conta a história de um menino que perdeu os pais de forma trágica e passa o tempo freqüentando velórios de desconhecidos. De repente encontra em um deles uma menina que também faz o mesmo, pois está prestes a morrer, vítima de câncer.
Os dois se enamoram e desenvolvem todo o relacionamento em torno dos espaços, ritos e preparativos fúnebres. Quanto mais, porém, se aproximam desse tema e o enfrentam, inquietos, mais se aprofundam na própria vida. É como se o filme nos dissesse: se nos lembrarmos da morte mais amiúde, talvez vivamos a vida com mais plenitude. Seremos como o pássaro da história citada pela menina. Ao fim de todo dia ele acha que, ao dormir, está morrendo, e ao acordar, vendo-se vivo, canta celebrando a vida.
Ambos, por razões diferentes, procuram se defrontar o tempo todo com a morte, talvez para compreendê-la, talvez para perder o terror diante de seu desconhecido, algo bastante diferente do que tendemos a fazer em nossa cultura atualmente. Já viram que, com a passagem do tempo e o crescimento das cidades, a morte passou a ficar cada vez mais afastada de nossas vidas, de nosso cotidiano, cercada de silêncio e tabu?
Antigamente, as famílias costumavam enterrar seus defuntos nos cemitérios existentes nos quintais da casa. Ou eles eram sepultados em torno das igrejas (padres e santos dentro delas), nos campos santos, bem no meio das cidades. Com o crescimento das cidades e do número de cadáveres, e por razões sanitárias, não santas, os cemitérios foram sendo “expulsos” para as periferias, para fora. Do mesmo modo os velórios eram realizados nas casas. Hoje são realizados nas capelas dos cemitérios. Antes era costume usar preto, guardar luto por dias, hoje isso já está fora de moda, como lembra a personagem.
Devemos esquecer a morte, deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos, vestir roupas coloridas e brevemente voltar à vida. Sim, a vida continua para os vivos. Mas o que me inquieta nessa pressa e afastamento é que a negação é também uma forma de fantasia, um mascaramento anestesiante da realidade. Devemos esquecer a morte e nos afundar na vida. Mas como podemos esquecer o único fato de que se pode ter certeza?A única coisa certa é que morreremos. Aliás, morremos desde que nascemos. O tecido de nossa pele que se desprende, os fios de nosso cabelo que se soltam são morte todo o tempo.
Essa negação da morte acaba gerando um tipo perigoso de alienação. Daí nosso espanto, nosso susto quando uma pessoa querida ou conhecida morre. Daí nossa revolta quando uma doença grave nos acomete. Mas como assim vem sem avisar a morte?! Pois ela nos avisa o tempo todo que está ali e aqui. Nós é que nos recusamos a encará-la.
Os personagens de Inquietos a encaram, até escarnecem nela, quando encenam os últimos momentos da menina, num verdadeiro diálogo com o melodrama cinematográfico. A morte realmente só é bonita na fita.
Precisamos nos preparar e conviver com a morte, eis o que este filme nos mostra. Lembro-me a propósito de uma história que me contaram num velório. A mãe de um conhecido, de quase 100 anos, o tranqüiliza e prepara para sua partida: “meu filho, não se preocupe, vou morrer mesmo. Foi combinado. E o que foi combinado antes não é caro.”
Esse filme, portanto, do início ao fim, é cheio de preparativos para a morte e, portanto, para a plenitude da vida. No início, o menino, ao desenhar os limites do próprio corpo, lembra-nos de como somos finitos. A imagem, aliás, já também com a figura da garota, é usada no encerramento, com o efeito de desaparecimento dos corpos, restando apenas o contorno feito a giz.
Inquietos, porém, não aquieta nosso coração, não traz respostas consoladoras para as perguntas seculares que nos assombram. De um lado o personagem fala com um fantasma (os japoneses até hoje a assombrar os americanos?). Do outro, o próprio fantasma nega sua existência, mostrando-lhe que o que o espera é apenas o vazio e assim, exortando-o a não adiar ou desperdiçar a vida.
O filme de Gus Van Sant parece, pois, nos dizer: lembremos sempre da morte, para não nos esquecer de como é bom estar vivos. E nos preparemos e que estejamos sempre, como diz Manuel Bandeira, prontos e a postos.
"Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar."
16:54 | Permalink | Comentários (0) | Tags: filmes, cinema, morte
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