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21-10-2009

Minhas mãos

Mãos Guayasamin.jpg

Outro dia, finalmente comprei uma pasta para organizar o material que utilizo com meus alunos em sala de aula, para guardar seus trabalhos, atividades, para reunir as dezenas de folhas avulsas nas quais faço anotações, rabisco datas, nomes, e-mails, telefones, e que tantas vezes se perdem e se tornam ininteligíveis no caos ou são carregadas pela distração ou pelo vento. E de repente, só nesse dia e momento emergiu à luz da consciência aquela sensação de ausência, aquela “saudade que dói latejada”, “que é assim como um fisgada no membro que já perdi”, como canta Chico Buarque.

De repente, ao arranjar os papéis, ao tentar, com toda a minha falta de jeito e de coordenação motora, impor-lhes e me oferecer alguma ordem, percebo claramente que sinto falta das minhas mãos, das mãos que já que não tenho, daquelas que migraram para tão longe, para outro continente. Eram elas que organizavam minha vida caótica, que substituíam as minhas quatro patas de Sagitário, que reuniam amontoados de celulose em delicadas pastas de papel de carta. Era ela.

Vera era minhas mãos. Desde os tempos da faculdade de Letras, era ela que digitava meus trabalhos, dando-lhes dignidade, um aspecto decente às minhas garatujas despejadas em folhas de papel almaço amassado que certamente aterrorizavam os professores. Quando comecei a desenvolver o projeto dos Escritos para uso pessoal e doméstico, poemas impressos em caixas, foi ela quem fez, com sua habilidade, paciência e delicadeza, os protótipos das primeiras caixinhas. Os meus projetos eram também seus projetos. Ela parecia que sonhava meus sonhos e continuava ainda a sonhá-los quando para mim eles tinham se convertido em decepção ou pesadelo.

Como pode alguém ser assim de uma generosidade tão sobre-humana, a ponto de se tornar as mãos de uma pessoa? Uma tentação para nosso egoísmo e egocentrismo. Pois eu ousei dizer a ela que gostaria de ganhar dinheiro bastante para contratá-la. Que ela se ocupasse exclusivamente de todas as questões práticas de minha existência. Que não só providenciasse para que as contas fossem pagas nas datas certas, mas para que os papéis parassem de voar e desaparecer com numa casa de bruxas. Para que ela fosse a governanta não de minha casa, mas de minha vida e emoções desgovernadas.

Ironia: uma vez Vera ficou com as mãos paralisadas, como se sofresse subitamente de uma artrite violenta – mais psicológica que física, creio. Decerto foi o peso das tantas responsabilidades que assumia, o fardo da sua compulsão por cuidar. Ironia maior ainda: hoje Vera é as mãos de outras pessoas. Desde que ela partiu para a distante Londres, tive que aprender a fazer coisas com minhas patas, a torná-las minimamente hábeis. E até que não tenho me saído tão mal. É verdade que o aprendizado tem sido marcado por adiamentos, como a tão demorada aquisição da pasta com o mesmo modelo que ela utilizava.

Talvez eu não quisesse encarar a tanta falta que ela me faz. Nunca tive com ninguém mais tanta afinidade de espírito, uma amizade tão profunda e tão antiga, que, sim, parece que remonta a outras vidas. Considero-me sim verdadeiramente afortunada por tê-la tido, durante algum tempo ao menos, como parte inseparável de mim. Vera, pela sua sensibilidade, altruísmo, é um daqueles personagens que merecem ser anunciados nos jornais e cantados nos livros, como um representante legítimo, um verdadeiro modelo dos grandes e verdadeiros amigos.

Comentários

Nunca tive uma Vera para sentir uma saudade que dói latejada, mas sempre fui um inábil. Agora, com o computador, minha inabilidade alcançou níveis nunca dantes. Tenho dificuldade para escrever. Canso. Imprimo no computador até os recados para meus filhos.

Ontem, fui fazer a rematrícula de minha filha no colégio. Doze cheques para assinar e um bando de formulários para preencher. No final, minhas mãos estavam cansadas do esforço de desenhar garranchos que pioravam a olhos vistos.

Mande um beijo para a Vera e me diga: dás aula do quê?

Beijo.

Escrito por: Milton Ribeiro | 22-10-2009

Puxa, também tive e tenho algumas Veras na minha vida. E é imprecionante a arte que elas têm de ajudar sem esperar algo em troca. Pessoas assim devem ser destacadas sempre.

Beijos

Escrito por: Huguinho | 25-10-2009

Você escreve muitíssimo bem, é sempre um prazer ler seus escritos. Parabéns!

Escrito por: gislene cortes | 02-11-2009

Nas minha mãos
De membros soltos
Ergo espigas como cutelos
A retalho gargantas em banquetes de orgia.
Com minhas mãos eu faço a Paz, também a guerra
Já dizia o Poeta com fervor
Há mãos que são para cultivar a terra   
E outras há que afagam com Amor.     
Há mãos que matam  crianças inocentes,
Há mãos que rezam por essas almas perdidas 
E há também aquelas que estando presas
Estão lutando pela liberdade perdida.  
Por isso eu digo, com as minhas mãos posso conquistar o mundo
Nunca me esqueço e faço tudo com juízo
E penso com o sentimento profundo
E terei tudo aquilo que é preciso 
Ronaldo Lírio                          

Escrito por: Ronaldo Lirio | 18-02-2010

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