04-10-2009
Perguntas de quem olha sem ver
Quando cursava ainda o segundo grau, ficava intrigada com um texto que sempre encontrava nos livros de história. Eis alguns trechos de Perguntas de um operário que lê, de Bertoldt Brecht: “Quem construiu Tebas de sete portas?/ Nos livros estão os nomes dos reis./ Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?/
E as várias vezes destruída Babilônia –/ Quem é que tantas vezes a reconstruiu?/ (...) Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a Muralha da China?/ (...) O jovem Alexandre conquistou a Índia./ Ele sozinho?/ César bateu os Gálios./ Não teria consigo um cozinheiro ao menos?/ (...) Cada dez anos um Grande Homem. / Quem pagou as despesas?/ Tantos relatos/ Tantas perguntas.”
Esse texto era utilizado pelos professores para nos introduzir na perturbadora história da exploração do homem pelo homem, na história de uma História escrita pelos ricos e vencedores. Percebo que se naquela época ele me inquietava e me fazia pensar na multidão explorada e esquecida, como uma abstração sem rosto, hoje me evoca algo mais próximo e real.
Ao relê-lo, fico pensando nas tantas pessoas que nos servem no dia a dia e de que não sabemos absolutamente nada. O que sabemos, por exemplo, sobre o porteiro do prédio onde vivemos? Onde mora? Será um lugar agradável ou insalubre? Será ele um solitário ou tem uma numerosa família? E os garçons dos bares ou restaurantes que frequentamos, aos quais tantas vezes tratamos com impaciência ou até arrogância?
É claro que nas grandes cidades as relações são naturalmente mais impessoais do que nas pequenas, onde as pessoas, em maior ou menor grau, sempre sabem das outras, conhecendo detalhes da árvore genealógica, tragédias e últimas peripécias. Mas por aqui a indiferença, e essa relação impessoal e descomprometida, disfarçada tantas vezes de profissionalismo, chegam a extremos um tanto absurdos.
Há algum tempo um amigo meu disse que estava à procura de uma nova diarista. É que a moça que cuidava de sua casa havia anos avisou de repente que não poderia mais trabalhar para ele.
“Mas o que foi, Odete?”
“Não é nada contra o senhor, não. É que semana que vem vou ganhar neném.”
“Como assim? Eu nem sabia que você estava grávida.”
E de fato ele nada sabia, afinal, raramente a via. Ela chegava assim que ele saía para o trabalho. Quando ele voltava, ou ela já tinha ido embora ou estava indo. Ela era meio gordinha, por isso ele não notou quando e quanto lhe cresceu a barriga.
Mas talvez a verdade mais profunda seja que ele olhava pra ela, mas não a via, como nós não vemos aqueles que nos cercam e nos servem. Podemos culpar a falta de tempo pelo fato de não sabermos nada sobre a vida dos que trabalham conosco, dos que cuidam da limpeza de nossas casas, da higiene e alimentação de nossos filhos. Mas muita vezes o que nos falta mesmo é interesse, curiosidade legítima, disposição para ouvir o que têm para nos contar aqueles que de fato erguem e mantêm cidades, países e impérios.
Reivindicamos mais igualdade social, votamos em candidatos que defendem a inclusão social, valorizamos empresas que praticam responsabilidade social, mas simplesmente ignoramos quem tão ardorosamente dizemos defender.
Simplesmente não enxergamos aqueles que abrem as portas pelas quais entramos, que preparam a comida que comemos, que sustentam o teto sob o qual nos abrigamos. A quantos passos estamos, assim, de ser eloquentes democratas públicos e secretos déspotas domésticos?
21:42 | Permalink | Comentários (2)
Comentários
An interesting story, but the picture reminds me 70-80 years of 20 century.
Escrito por: Aldrick. cuba calling cards | 08-02-2010
Great and nice post thank you.
Escrito por: online degree | 25-08-2010
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