29-06-2007
Centopéias e sem calçados
Recentemente, um juiz paranaense não permitiu que um trabalhador rural participasse de uma audiência porque calçava chinelos de dedo e isso “era incompatível com a dignidade do Poder Judiciário". Escapou ao bem togado senhor que algumas pessoas podem não usar chinelos apenas por questão de moda ou estilo. Talvez lhes faltem sapatos ou morem lá onde Judas perdeu as botas, tendo que andar a pé léguas, perdendo a elegância ou ganhando calos.
Os poucos pares de sapatos do trabalhador e de sua família estavam guardados no fogão, certamente não porque sejam essas as últimas tendências de arquitetura e decoração, por questões de ecologia, para dar novos usos a fogões velhos que iriam para o lixo. O mais provável é que a família não possuísse um só armário.
O juiz se esqueceu de que ainda existe um Brasil de calcanhar rachado, não apenas descamisado, mas descalço de oportunidades e de bons mocassins. Mas talvez, se a gente estivesse no lugar dele, agiria do mesmo modo. É que em nossa vida mediana, que nos permite ter o calçado adequado para cada ocasião, combinar a bolsa com o sapato, usar o modelo da estação, nos esquecemos de que nem sempre os chinelos foram e são um acessório de gente descolada, sinônimo de informalidade e descontração.
Não chegamos a ser uma Imelda Marcos, viúva do ditador filipino Ferdinand Marcos, com sua coleção de 5 mil pares para um único par de pés. Mas nos esquecemos de nosso passado recente, do mundo simples, distante das facilidades e armadilhas do consumismo. Da simplicidade e de ter um só par para o nosso vagar.
Há bem pouco tempo, esses chinelos de dedo, que agora são moda até na Europa, vendidos a peso de euro, usados nos carnavais fora de época, bares e festas, e distribuídos nos bailes para que todos dancem mais confortáveis, eram simplesmente crachá de pedreiro. E continuam a ser, lá nos bairros onde estão as meias perdidas do Judas, nas periferias que nossos saltos agulha não pisam.
Mas episódios assim são bons para nos lembrar que o Jeca Tatu, o país pobre e de calcanhar rachado são parentes próximos, nossa ancestralidade. Nem todos, aliás, nascemos com sapatinhos de crochê, banhados a ouro. Lembro-me, a propósito, de que, quando estudante do primeiro grau, tinha apenas um par de sapatos, usado durante todo o ano escolar. Só ganhava outro quando os pés cresciam mais do que o previsto. Para meus irmãos, uns dez anos mais velhos, os sapatos foram ainda mais raros. Recordam-se até hoje das chacotas ouvidas por causa de suas bocas de sapo, a forma com que os colegas do grupo chamavam as botinas furadas.
E minha mãe me contava que somente aos sete ou oito anos ganhou seu primeiro par, bonitos sapatinhos de verniz preto que ela mal ousava calçar na fazenda onde vivia. Com o tempo, apesar de todo o zelo, o solado descolou e ela, inconformada, chorava, tentando pregá-lo com os espinhos das laranjeiras, onde se viam, às vezes, orgulhosas centopéias. Não deixamos de caminhar por isso, porque tínhamos apenas um par. Mas, hoje, centopéias deslumbradas com o poder de muito ter, nos esquecemos de que pés são para andar e calçados para proteger.
Crônica publicada dia 15 de julho em O Popular.
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