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15-03-2007

Em terra de cega, quem tem um olho nega

Será apenas uma impressão imprecisa de míope ou as pessoas parecem poderosíssimas, perigosamente poderosas, com seus óculos escuros? Sobretudo agora que a moda dita ser de bom gosto os óculos enormes que cobrem pelo menos um terço do rosto. As armações e lentes gigantescas tornaram-se – dizem os estilistas e doutores em moda – um acessório de charme e beleza, não servem apenas para proteger e confortar. Tanto é que há os exclusivos para se usar à noite, para a balada.
Mesmo em situações em que não se sofre o império do sol, em ambientes em que não são exatamente imprescindíveis, não em praias ou clubes, mas em bares e festas, durante um fim de tarde, por exemplo, lá estão eles, assustadores, enigmáticos. Ao vê-los, as pessoas familiares se me afiguram estranhas. As estranhas, então, estas me espantam, me intimidam.
Também costumo empregá-los, com alguma inquietação, pois sinto que nos desfiguram, nos transformam em outros, em misteriosos zangões, em abelhas sensuais. Fico pensando o que há por trás deles, não só nos crânios que os carregam, se olhos miúdos e úmidos, se fogosos e ostensivos, mas por trás dessa prática e hábito de esconder-se e mascarar-se. Diz um dos muitos ditados sobre olhos que são eles o espelho da alma. Será que não desejamos que nossas almas sejam vistas e espelhadas? O tal pudor que agora se transferiu do corpo para o espírito? Podemos exibir os mamilos, mas não as pupilas, que guardamos com recato? Ou será que ocultamos apenas o vazio de nossas órbitas?
E o que dizer dos óculos espelhados que já estiveram na moda? O que pretendíamos com eles? Que nossos observadores, ao nos contemplar, não vissem senão a si mesmos? Penso na intimidade insólita de um casal de namorados, frente a frente, ambos com óculos espelhados. Que cômica solidão e que tedioso narcisismo!
Em um diálogo entre eles, poderia se aplicar perfeitamente a expressão: “Linda, eu só tenho olhos pra você”. De fato. Quando Linda tentasse olhar nos olhos de Lindo, só veria a si mesma. Ainda que a gente bem saiba que com as lentes certas se pode olhar para todos os lados, sem nunca ser flagrado. Mas acompanhar o olhar de alguém e olhar nos olhos de outrem pode ser de fato uma invasão ou a revelação de algo que não se desejava perceber. Que o diga bem Chico Buarque em sua canção: “Olhos nos olhos/ Quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”.
O uso de óculos escuros parece merecer mesmo um atento estudo sociológico e psicanalítico. Na falta dele, para nosso entendimento e orientação, vamos nos disfarçando – afinal, como já dizia a vovó de Raul Seixas, “quem não tem colírio, usa óculos escuros” e com a ditadura da moda, em terra de cega, quem tem um olho nega.
Não nos esqueçamos, no entanto, do que perdemos e sonegamos com nosso disfarce: informações valiosas que só outros olhos podem dar. Revelações sobre a gula de quem tem o olho maior que a barriga. Sobre o sadismo de quem acha que pimenta nos olhos dos outros é refresco. Sobre a inveja do olhar de seca pimenteira e a concupiscência do olho grande ou do que come o almoço de olho na janta. Sobre a perspicácia do que fica com um olho no padre e outro na missa. Sobre as secretas intenções daqueles que estão botando areia nos olhos da gente, acreditando que o que os olhos não vêem, o coração não sente.

Crônica publicada dia 15 de março em O Popular.

Comentários

bem visto. a moda tem coroa e manto branco.

Escrito por: maria | 26-03-2007

Gosto de usar óculos escuros à noite. nem sempre. Mas se saio e fico na rua até ä noite, muito frequentemente não mudo de óculos. Mas depende. Tenho lente e graus em todos os óculos pois não enxergo nada sem eles. E o meu escuro tem uma lente tão nítida e clara que não me incomoda. Por acaso, continuo com ele apesar de estar em casa. Ou seja, não trouei depois que cheguei em casa.

Você viu a coleção de óculos do Romário no Fantástico da semana passada? . ))

Escrito por: Ana maria santeiro | 07-04-2007

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