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19-01-2007

Presentes do além

Quando Cecília recebeu o primeiro presente, acabava de voltar da igreja. Tinham celebrado a missa por um mês de falecimento. Apenas um. E justamente no dia em que fariam 30 anos de casamento. Ao abrir a caixa, ela quase tombou de susto, não tanto pelo relógio de parede – mais um para sua coleção – que pulsava como um animal vivo, mas pelo bilhete. Não havia dúvida. Era dele a assinatura. As mesmas consoantes dobradas para a direita. O mesmo jeito tortuoso de desenhar o jota. Não havia dúvida. Era um presente do além.
Entretanto, para Luciana, a filha, tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Alguém poderia ter imitado as garatujas do pai. A doença o atingiu tão rapidamente, atirando-o no estado da letargia e da inconsciência. Ele não teve tempo para despedidas ou para preparar presentes póstumos.
Após seis meses, porém, quando Cecília completou 60 anos, entregaram o buquê de flores do campo. E mais um bilhete. E aquele jeito de escrever que era só dele. Luciana chegou a vacilar, mas manteve seu ceticismo e tratou logo de consultar a floricultura. Disseram que um senhor magro e grisalho, elegantemente desempenado, encomendara o ramalhete. Mais não souberam contar.
A princípio, quis esclarecer tudo, mas deixou de lado. Era bom ver a mãe agitar-se de expectativa quando se aproximava o dia, assisti-la abrir as embalagens, exultante. “Ele se comunica! Meu Deus, ele se comunica comigo!” E ao seu modo, ela também se emocionava, por mais que soubesse que na vida e mundo nada se dá de inocente e graça.
Embora duvidando da comunicação das almas, surpreendia-se com as escolhas que o pai soubera fazer, com a coragem que teve de encarar a morte muito antes que ela se anunciasse. Uma espécie de seguro de vida afetiva, para que, mesmo definhando o corpo, não cessassem as manifestações de amor. O presente exato para cada ocasião, cada ano. O filhote de bassê para fazer companhia a Cecília desde que Luciana se casou. O casaco de lã para aquele inverno de frio inusitado.
Como ele podia prever que no ano de 1996, uma massa de ar gélido faria a temperatura cair nessa terra de fogo? Ah, mas seu pai sempre manteve a disciplina militar, mesmo depois de deixar a farda. Com sua incansável precisão e método é que havia conquistado a jovenzinha subversiva, num Rio de Janeiro de repressão, num estado de amor totalmente absurdo e contraditório. Tanta estranheza e tamanha contradição que deixaram ambos a corporação e o partido para se dedicar a sua história privada de febril atração de opostos.Vieram assim morar em Goiânia.
Otávio decerto mantivera seus contatos entre os militares, especulava Luciana. Deveria ter depositado uma determinada quantia num banco e encarregado alguém, provavelmente um antigo colega de farda, de comprar os objetos, efetuar os pagamentos, enviá-los. Mas quem teria uma tal sensibilidade para escolher o presente que a ocasião pedia e sobretudo para enviá-los não somente nessas datas comuns e clichês, aniversário, natal, bodas, mas nas pequenas datas significativas? No dia em que Cecília finalmente se decidiu a contratar um acompanhante e ir com as amigas para uma casa de dança de salão. Havia freqüentado as aulas por um ano, mas nunca se animava a sair. Naquela noite, porém, tendo se decidido, recebeu a caixa de sapatos com um modelo elegante que lembrava muito os pares usados pelas dançarinas de sapateado.
Que fosse apenas coincidência. Que fosse. Que seu pai tivesse sido tão vaidoso e egocêntrico que não aceitava ser esquecido e por isso os souvenirs regulares. Por outro lado, o gesto dele não tinha aquele quê de contratual, de obrigação e permuta que caracteriza a troca de presentes. Era espontâneo, gratuito, afinal, como retribuição, Cecília não podia senão dizer preces ou colocar flores em seu túmulo.

03-01-2007

F de Fabuloso

medium_wolhos.jpg
F de Fabuloso
V
de volver.
A vingança
do tempo
foi você continuar
a me querer
e eu,
não te esquecer.

Você faz meus olhos se acenderem
em chama.
Um nós
incandescente.
Juntos,
estrelas cadentes.
Caímos direto
na cama
dos convalescentes,
no leito
lençol e lava fervente
dos que amam.

Minha cama
já não serve pra dormir,
tem manchas,
espinhos e lâminas
e satélites
cortantes
tal a saudade
desse instante.

O teste do amor
pra mim é esse.
Se meus olhos lançam
faíscas
lado a lado
do objeto amado.
Se brilham
sem que o contemplem,
só de pensá-lo.
Se rastros de estrelas ficam
presos nos retratos,
é porque o amor
está presente,
o amor
e sua cauda
de cometa Halley.

Na minha vida
há agora
tudo o que brilha.
Há nos meus olhos,
famílias de astros.
Meu brilho
se reconhece
no seu brilho.
Minhas patas de sagitário
na sua lã de áries.
Você não é só meu planeta,
é meu planetário.
Sua casa, minha casa.
O sol nasceu num domingo.
As luzes da cidade
fazem algum sentido.

Eu não sabia
quando sentisse,
que sentiria isso.
Um amor de Fada
e de Fábula.
Sarça em fogo.
Coração
no alto do pescoço,
trespassado
por sua falta.

A moral de nossa história
é essa:
o amor dá certo
quando começa
tudo errado.
Quando é tombo
e equívoco.
Quando é praticamente
improvável.
Você é meu quase impossível.
Por isso é incrível.
Seu demônio fabuloso,
eis sua fada
de fazer gostoso!



Aos 120 dias de um ano cheio de surpresa e significação.