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15-12-2006

Cará quando acha boa terra, racha

Quando a gente vive perto demais de alguém, naquela intimidade e promiscuidade de corpos e toaletes que tornam qualquer normalidade impossível – de perto nossos narizes são sempre grandes e os dedos dos pés monstruosamente estranhos – inevitavelmente surgem os códigos estritos do afeto e da implicância.
São aquelas dezenas de apelidinhos carinhosos e ridículos compartilhados pelos casais, que tão logo passam a usar o banheiro de porta aberta, trocam a voz melodiosa da sedução pelos grunhidos de bebê e outras bizarrices. São também os xingamentos e gírias repartidos entre irmãos e amigos, esses seres que manifestam o amor, no mais das vezes, enchendo o saco e cortando carapuça.
Sim, cortando carapuça – uma expressão que talvez nem todos conheçam, mas que integra, por exemplo, o meu próprio léxico familiar. As famílias costumam ter, aliás, seus vocabulários próprios, construídos a partir das histórias que viveram ou conflitos que enfrentam. E mães e pais têm seus sortidos de provérbios com que educam e deseducam os filhos.
Meus pais, que nasceram e sempre viveram na roça, nos legaram, aos filhos, pelo menos uma dúzia de expressões peculiares, que, volta e meia, usamos entre irmãos, mas também entre amigos e conhecidos. Naturalmente, os não tão íntimos as desconhecem, olhando-nos perplexos e indagativos.
Cortar carapuça nem é mais curiosa delas, uma vez que já existe a expressão “a carapuça serviu”, aplicada cada vez que alguém faz um comentário maldoso ou crítico e outro se sente ofendido. Fabricar a tal touca, porém, refere-se ao próprio ato de implicar, de maldizer. E como entre famílias somos pródigos em picuinhas...
Cará quando acha boa terra, racha – gostava de dizer minha mãe quando abusávamos de sua paciência ou boa vontade, significando que um tubérculo em terra muito fértil cresce até rachar, mas, sobretudo, que filhos muito bem tratados se excedem e se tornam mimados. Em geral esse provérbio – e minha mãe sempre os colecionou – era acompanhado de uma boa sova. Jeito rude de nos avisar: “você está pegando peso comigo”, provavelmente o equivalente de “você está pegando pesado”.
E eram muitos os avisos que nos dava, por meio de suas histórias proverbiais. Uma das que gostava de contar era do homem que saía pra caçar o quati do almoço. De pontaria boa, o caçador atirava no bicho, que despencava da árvore. Confiante, gritava para a esposa: “Mulher, pode jogar o feijão fora que o quati ta morto!” Ela fazia o mandado. Quando o homem voltava para buscar a caça, porém, o bicho, matreiro, que se tinha feito de morto, não deixara rastro. Moral da história: algo como “não conte com o ovo no quentinho da galinha”.
Com essas e com outras tentava nos ensinar a ser prudentes. Principalmente para as filhas mulheres, às quais não se recomendava que fossem volúveis no amor, advertia: “macaco que muito pula, leva chumbo.” E se tínhamos comido pé de cachorro e vivíamos pela rua, nos alertava: vocês estão num pé e noutro, igual ao cachorro do Sestroso. Quem seria esse Sestroso, nunca fizemos idéia, mas até hoje usamos essa expressão, quando queremos nos referir a alguém que anda por aí, com ares de importância, como se tomasse inadiáveis providências.
Já meu pai costumava dizer, quando se sentia desanimado, que estava “desacoçoado”. Bem mais tarde, fui entender que a pronúncia correta era “desacorçoado”, que por sua vez é uma alteração de “descoroçoado” - que significa, originalmente, com o coração despedaçado, desfeito, desalentado, sem forças. E poética também era minha mãe, que quando se encontrava deslocada, sem saber o que fazer ou sem assunto no meio das pessoas, dizia estar vendida. Ou ainda, quando acordava com uma vaga sensação de melancolia, vendo tudo sem achar sentido em nada, exclamava: ah, estou tão “sobressaltar”! E seu sobressalto nada tinha a ver com susto. Como nada têm a ver com os dos outros os nossos próprios dicionários, poéticos e pessoais.


Íntegra da crônica publicada dia 15 de novembro em O Popular. Aproveitei pra mudar o título, já que aqui tenho mais espaço e menos editores :)