20-11-2006
Amor de papel
http://www.flickr.com/photos/umdiaumafoto/296748215/
Na calçada de uma rua qualquer de São Paulo, o homem dorme, cobrindo parte do corpo de sua amada. Barbudo, sujo, ele se aninha sob o plástico. A amada, porém, os cabelos longos, os olhos azuis, os ombros à mostra, o corpo nu – parte dele sob o peso do companheiro – tem feições sensuais e um semi-sorriso. Não reclama dele, de sua miséria esmagadora. Não lastima a sorte de dormir assim ao relento, a pele exposta a olhares passantes e ventos enregelantes.
Não lamenta, não porque seja uma dessas mulheres estóicas que subsistem nas canções de Mário Lago e Chico Buarque. Ela é resignada e silenciosa porque é de papel. Só uma mulher de papel seria assim tão doce e dócil. Nem Amélia na sua indiferença para com a fome. Nem as mulheres de Atenas, que secam por seus maridos.
As formas perfeitas do seu corpo devem ter sido cortadas de um cartaz ou de um grande banner com a ciência certa de uma tesoura ou com os macetes de um estilete. Sim, ele está dormindo com o pedaço de um anúncio ou de uma capa de revista. Toda essa imagem é, aliás, um recorte eloqüente da realidade. Trata-se de uma foto, publicada na net, feita pelo fotógrafo paulista Roberto Delduque, um flagrante impactante da dureza, ironia e poesia das ruas (www.flickr.com/photos/umdiaumafoto/).
Sabemos para que serve aquela amante em policromia. Americanos comprariam bonecas infláveis. Não esse indigente brasileiro. Resta recorrer à criatividade, ao improviso. Mas o interessante é que, ali, ele dorme o sono de depois do amor ou de depois do porre, ou talvez o sono das crianças que abraçam bonecas, bichos de pelúcia, ou qualquer coisa que lhes pareça bela, para, de certo modo, introduzi-la na escuridão do sono e adoçar o despertar.
Ao ver tal foto, fiquei pensando no que teria levado aquele homem a valer-se de tal expediente no amor. O sentimento da solidão? A atração irresistível pela beleza que não se põe na sua ausência de mesa? A publicidade propõe todo o tempo a aquisição do produto e do sucesso. E em grande parte dos anúncios, o produto e seus derivados estão atrelados à figura de uma bela mulher. Já que ele não pode comprar o melhor carro, o mais moderno celular, a melhor cerveja, para ter a melhor mulher, pode ao menos assenhorear-se do próprio anúncio, torná-lo seu objeto de consumo, manuseá-lo. Pode fazer o mesmo com o torneio dos corpos impossíveis estampados nas capas das revistas de nu.
Contemplando a foto, lembrei-me de como eu furtava as revistas eróticas de meu irmão mais velho, arrancava-lhes os corpos nus, que não me interessavam absolutamente nos meus sete anos, e me divertia com suas cabeças, fazendo extravagantes cortes de cabelo. E havia também as bonecas de papel, compradas nas bancas, com roupas também de papel, que eram sobrepostas aos corpos rasos. Comprá-las era um meio de renovar, baratinho, meu estoque de fantasias. E suas figuras planas me divertiam. Elas não eram menos bonecas por isso.
Da mesma forma, tudo o que eu que achava belo e colorido, era recortado, como se, assim, eu conseguisse libertar, imprimir vida às figuras e delas me apropriar. Recortava ainda os brinquedos anunciados nos folhetos das lojas de departamento, aquilo que jamais seria meu, mas que de certo modo eu já tinha, em simulacro. Mas eu era apenas uma criança. O problema é que nos tornamos adultos vorazes e, nessa sociedade de consumo, que dilata nosso desejo até o infinito, tantas vezes nos distraímos com a ilusão da posse, com a sombra da coisa e não com a própria, com amores de papel e pessoas de mentira. E nos tornamos também infantis criaturas de celulose, frias, indiferentes, esquecidas de que a verdadeira vida e os verdadeiros homens pulsam lá fora, na rua, ali ao lado, aqui dentro.
Crônica publicada dia 19 de novembro em O Popular.
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