11-02-2011
Pai para sempre
Já se tornou até lugar comum dizer que no Brasil só quem vai para a cadeia é quem não paga pensão alimentícia. Isso parece ser fato. A Justiça opera com agilidade não ordinária quando se trata de garantir o auxílio paterno para o sustento dos filhos, o que pode ser considerado um grande avanço.
Não faz muito tempo, os homens podiam exercer livremente a paternidade irresponsável, sem que nenhuma punição lhes fosse aplicada. Muitos homens só faziam os filhos e depois quem se virava para cuidar deles era a mulher. Quem pariu Mateus, que o embale. Felizmente, hoje, como surgimento e o acesso facilitado aos exames de DNA, com as mudanças no Código Civil, e ainda com a ação mais ágil da Justiça, os homens têm que arcar com as consequências de seus atos.
Paralelamente, e também felizmente, muitos homens têm despertado para o peso e o sentido da paternidade. Muitos curtem mesmo a chegada de um filho, amam e cuidam. Ainda assim, há uns tantos que só fazem isso sob a pressão da lei. A lei, porém, pode garantir o auxílio financeiro, mas não pode assegurar que se dê proteção e amor, aquilo que muitas vezes os filhos mais desejam.
A Justiça garante mesmo que aqueles homens que se recusam a fazer o exame de DNA sejam considerados pais. Se esse tipo de decisão tivesse sido tomada antes pela Justiça, casos como de minha amiga Cynthia Lorena não teriam ocorrido.
Recentemente, Cynthia comoveu muita gente ao expor no Facebook o drama que vivia e ainda vive. Ela é filha de um renomado advogado em Goiânia, por ironia um profissional atuante na área de direito da família. Só aos 24 anos, depois de um longo e conturbado processo, teve a paternidade reconhecida. Conviveu algum tempo com o pai, inclusive em sala de aula, quando foi sua aluna do curso de Direito, na Universidade Federal de Goiás, no início dos anos 90.
Como observa a própria Cynthia, “naquela época já existia o exame de DNA e já se conheciam casos como a filha do Pelé que fora rejeitada pelo pai mesmo diante da prova científica da paternidade”. Apesar disso, o pai-professor ignorou a demanda legítima da filha em ser registrada, apesar de já ter sido submetido a um exame de DNA para reconhecimento de outro filho, realizado naquela época na cidade de Belo Horizonte.
Filho não é pedinte - Cynthia recebeu alguns pequenos auxílios financeiros depois de muitas e dolorosas batalhas, mas como ela ressalta, “sempre em uma condição absurda de pedinte, como se fosse inaceitável a posição de reclamar o apoio do pai em momentos críticos de minha vida”. “Minha trajetória acadêmica seguiu eivada de constrangimentos, uma vez que colegas e professores descobriram minha filiação, mas nunca entendiam de fato o motivo do desprezo do pai que sempre conseguira se esquivar da feitura do exame, seja tentando influenciar advogados que o procuravam para tanto, ou mesmo fugindo às minha tentativas amigáveis para fazê-lo”, conta. Outra ironia é que ela aprendeu com seu próprio pai-professor os princípios que dizem respeito do significado da expressão personalidade civil, “direito este que todo indivíduo é possuidor no momento em que nasce: ter em seu registro civil os nomes de seus progenitores”. “Aprendi com ele que este tão simples e importante ato é a fonte basilar para o exercício da existência civil de toda pessoa”, desabafa.
Ela prossegue em seu desabafo, lembrando o quão importante e fundamental pra vida de qualquer pessoa é ter conhecimento de suas origens. “Trata-se de uma curiosidade visceral na busca de nos conhecermos melhor. Procuramos nos reconhecer em nossos pais, tanto na personalidade, como em suas feições, temperamentos, jeito de ser. Isso contribui para a construção de nossa identidade.” observa. Cynthia lembra, por exemplo, que é comum filhos adotivos quererem investigar a existência de seus pais genéticos. Para ela, porém, essa busca teve um preço alto. “Desde a adolescência fui em busca do meu pai a fim de conseguir um pouco de sua presença. Procurei conquistá-lo tentando conviver um pouco com ele. No entanto, obtive como resposta um pai hostil, distante afetivamente, cujo desprezo era notoriamente público”, lamenta. Ela revela que quando entrou para o curso de Direito desejava também sua admiração enquanto aluna, como uma garantia de que seria reconhecida como sua filha, não só pelas vias cíveis, mas para resgatar um pouco a relação de pai e filha que nunca tiveram. O resultado de seu intento foi ter toda a sua história pessoal e profissional marcada e transtornada pelo descaso e pela indiferença. Acabou por deixar o curso, que só retoma agora, anos depois, procurando inclusive munir-se de conhecimentos que possam ajudá-la em sua luta dolorosa e solitária.
Drama individual, casos coletivos - Cynthia já é hoje maior de idade, divorciada e tem uma filha. Ainda assim, vive um momento particularmente difícil, e necessita como nunca do respaldo de um pai que simplesmente se recusa a recebê-la, a lhe dar amparo, talvez para proteger os interesses dos filhos legítimos, contrapostos aos já terrivelmente chamados de bastardos, expressões e conceitos, aliás, que me parecem, tornaram-se impróprios com o novo Código Civil. Cynthia acampou na porta do escritório do pai, com suas malas e seu justificado desespero, para ser recebida por ele, mas não teve êxito.
O jornal Opção publicou em sua edição online o relato corajoso. Outros jornais não costumam abrir espaço para dramas individuais que, no entanto, refletem e dizem muito do que se passa em âmbito coletivo. Não sou especialista em direito na família, não entendo mesmo muitas das mudanças que o novo Código Civil trouxe, no texto chamado de Estatuto das Famílias, mas sei que, assim como mãe, quem é pai, não é pai apenas quando o filho é um bebê. Quem se torna pai, é pai para sempre. Como eu, muita gente deve conhecer inúmeros casos de pessoas que, por não terem tido o amor do pai, carregam uma marca dolorosa, uma espécie de carência crônica, que dificulta sua relação com o mundo.
O novo Código Civil trouxe outros avanços, como penalizar as mulheres que promovem a alienação parental. Nas decisões que virão a seguir, a Justiça deveria olhar também para os novos modelos de família, punir também padrastos ou madrastas que promovem esse afastamento. É muito comum ver casos em que, quando um homem que tem filhos de uma primeira relação casa-se e constitui uma segunda família, a segunda mulher faz de tudo para afastá-lo dos filhos da primeira união. Nesse caso, a alienação parental é promovida pela madrasta ou padrasto.
Mas a Justiça deveria, sobretudo, deliberar com mais rigor e agilidade sobre assuntos que dizem respeito à relação entre pais e filhos. Porque quando se passam décadas, como ocorreu no caso de Cynthia, o estrago emocional já foi feito e o único ressarcimento que se pode ter é de ordem financeira. Depois da frustrada tentativa de um diálogo, só resta a minha amiga mais uma vez recorrer à Lei e esperar pacientemente pela Justiça. E que ela seja feita.
21:03 | Permalink | Comentários (4) | Tags: pais e filhos, histórias agudas e crônicas