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17-02-2012

Sobre Leo Lynce, Alberto Caeiro, poetas, pastorinhas e os amores possíveis

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Canção da felicidade


“Houve um poeta que cantava
uma canção de amor que começava assim:
Quando virás, Pastorinha dos meus sonhos
trazer a felicidade para mim?

Um dia, de repente,
trazendo a felicidade,
a Pastorinha chegou.
Mas o poeta, inconcebivelmente,
nunca mais cantou.”

Quando recentemente conheci esse texto do escritor Leo Lynce, pensei a princípio que se tratava de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o guardador de rebanhos, aquele que diz que “pensar é estar doente dos olhos”.
Pois o texto me fez adoecer ao pensar em como o amor e a criação literária vêm sendo vistos há séculos e até hoje por muitos, por grande parte da humanidade. O amor tem sido há muito tempo associado à impossibilidade, à infelicidade. Como diz Vinícius de Moraes, “todo grande amor só é bem grande se for triste”.
Desde o surgimento do amor cortês na Idade Média, dos trovadores, desde as cantigas de amor e de amigo medievais, o amor só é visto como pleno, grande, digno de ser cantado, se for impossível, improvável, repleto de obstáculos. E depois vieram as grandes obras que consolidaram o romantismo, as histórias de amor paixão-romântico que moldaram nosso modo de encarar os relacionamentos. Histórias contadas e recontadas de casais desencontrados, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Romeu e Julieta.
Dessas histórias derivaram os clichês e  grandes dores para a humanidade, e, claro, as nossas maiores e melhores obras de arte: as canções mais chorosas. Oh, Chico, “quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus...” E o nosso tango insensato, uma dança em que nunca se acertam os passos, o cultivo de uma sede que nunca poderá ser saciada. Não poderá?
Do mesmo modo, tornou-se uma espécie de lugar-comum dizer que para criar é preciso estar a sofrer e principalmente estar a sofrer de amor, a sofrer por um amor improvável, impossível, não correspondido. Os poetas seriam seres movidos a dor.
Creio sim que há certa verdade nisso, porque a dor nos convoca a vasculhamentos, a dor nos aprimora e lapida. Bem o diz Manuel Bandeira em sua estatuazinha de gesso: “só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. Porém, o amor quando sempre tão recheado de insucessos, o desejo sempre tão premente e adiado, pode levar a neuroses, psicoses e até a desfechos violentos e trágicos.
E se a criatura, o pobre poeta está sempre a padecer desses adiamentos, se sofre de uma sede nunca saciada, uma hora ou outra, paralisa-se, seca a sua fonte poética, é condenado a um silêncio impotente. Porque se a criação sobrevive de desejo, também necessita de orgasmo. E na paz que há após o êxtase, na lassidão que há após o rascunho do texto, uma nova história começa. Começa talvez a melhor parte.
  Como também já se tornou lugar-comum dizer, escrever é 10% inspiração e 90% transpiração. Duvido sinceramente que as grandes obras da humanidade tenham sido escritas em arroubos de paixão. Sim, ela pode tê-las desencadeado. Mas certamente foram necessário dias, meses e anos de calmaria, de dedicação, de tranquilos coitos conjugais, de papai-e-mamãe, para que se transformassem nos textos eternos em que se tornaram. Desencontros, onanismo, coitos interrompidos talvez tenham criado lindos poemas, mas não todos, não a maior parte.
Então, como na história desse poeta citado por Leo Lynce, muitos creem que a criação é mesmo incompatível com a felicidade.  Se finalmente o poeta alcança o objeto desejado, o ser amado, se sacia seu desejo, sua voz se cala, morre seu canto. Eis o engano em que temos sido educados por nossa tradição literária ocidental, por nossos mitos de amor-paixão romântico. Ficamos paralisados diante da possibilidade de um relacionamento que não seja tango, relâmpagos e trovoadas. E se de repente nos acontece uma realização plena, e se de repente nos encontramos apaziguados? Também temos horror à felicidade. Ensinaram-nos muito bem ensinado que sofrer é o único caminho possível, que só  há grandeza  e beleza nos amores impossíveis.
Mas e os amores possíveis? Morreremos se por acaso se materializarem? Amores possíveis não são nem trovas de poetas, pastores e pastorinhas, nem tampouco  contos de fada, porque nestes os personagens  foram felizes para sempre, e o sempre não existe, assim como também não existe para todo o sempre a infelicidade.
Ao final deste texto, relendo algo da obra de Alberto Caeiro, vi como estava enganada. Não há certamente semelhança entre o modo como Caeiro e o poeta de Leo Lynce encaram o amor. Distraí-me e me confundi com a figura da pastorinha, e outras confusões cá minhas, mas eis como para Caeiro o amor não é o fim do canto, a infelicidade ou o afastamento de si e da natureza.

 

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza ...
Tu mudaste a Natureza ...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
 

P.S: Este tema, o conceito de amor-paixão romântico que herdamos da tradição literária ocidental é muito bem abordado pela psicanalista Regina Navarro em seu livro A Cama na Varanda. Vale ler e reler.