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03-04-2011

Aos solitários, as batatas! Aos adoentados, as cebolas!

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Você anda adoentado, triste, deprimido? Já experimentou a terapia da cebola? Não, ela não consiste em cortar cebolas, numa cerimônia exótica, para invocar o deus adorado do choro, seu sumo de ácido sulfúrico como um pretexto para fazer verter as lágrimas represadas. Se bem que isso pode ser uma boa, vá lá. Às vezes a nossa angústia está trancada e só mesmo um filme daqueles bem melosos, uma velha canção ou até mesmo uma cebola bem descascada e bem fatiada para nos fazer abrir as comportas.

A terapia consiste simplesmente em colocar na cabeceira da cama, junto com o livro da ocasião, a versão preferida do evangelho e quiçá o ansiolítico (como se batiza hoje o antigo calmante ou sonífero), um prato com uma cebola cortada.

 Noite passada, resolvi experimentar a terapia cebolística, seguindo indicação de uma psicóloga com que me consultei. Há muito tempo sofro com gripes constantes, dores de garganta e tosse. É como se eu nunca me restabelecesse completamente. Até cheguei a dizer, para horror dos especialistas em otimismo e em programação neurolingúistica, que um dia é da gripe, outro do resfriado, um da doença, outro da convalescença. E nem é preciso ser imunologista, psiquiatra ou psicólogo para supor que esse estado deriva de um processo de estresse que se agravou nos últimos meses. Au revoir, qualidade de vida e imunidade! Ou até breve!

            Segundo a psicóloga, a cebola “chuparia” todas as bactérias ou vírus que eventualmente me acompanhassem. O fato é que depois de já ter tentado alguns tratamentos, entre eles uma vacina, um lizado bacteriano, que deduzo, seja um bombardeio de bactérias para acordar as defesas do organismo, resolvi experimentar a terapia sugerida, pensando que se bem não fizer, mal não vai haver. Exceto, claro, o inconveniente do odor, que mal faria ter ao lado da cama, no criado surdo-mudo e sem olfato, um prato de cebolas cortadas em rodelas?

Surpreendentemente, posso dizer, malgrado a catinga, tive uma noite bem mais agradável dos que as anteriores. Efeito certamente da própria sessão com a psicóloga, ocasião em que desaguei um rio inteiro. Quando terminei a sessão, ela, aliás, me disse, “talvez você melhore agora que falou e chorou”.  Realmente: a alma está menos congestionada. A garganta inflamada eram talvez também palavras entaladas? E o rio de secreções eram lágrimas represadas? E como cantaria Roberto Carlos, tantas, tantas emoções transmutadas em catarro? Mas ao final deste texto volto a falar disso, porque afinal a cura do corpo e da alma é, muitas vezes, uma e a mesma coisa.

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 Poesia terapêutica - O fato é que acordei me sentindo um pouco melhor e não pude deixar de rir ternamente ao contemplar o prato de cebola ao lado da cama. Achei-o deveras poético. Poético, porque sempre vejo poesia no ambiente e nos ritos domésticos, nos legumes, nos utensílios de cozinha, nas especiarias. Talvez por isso mesmo, em priscas eras, escolhi para meu blog o nome de Almofariz. Não sou muito chegada a cozinha, mas para preparar uns antepastos de  poesia e não para cozinhar, ela bem serve. Inspirada no mundo dos cuidados e descuidos domésticos, dos afazeres e dos não fazeres, dos zelos e dos desmazelos, escrevi o que considero uma das minhas frases mais geniais, com perdão do exagero e da nenhuma modéstia: “solidão é quando as batatas brotam na geladeira”.

              Pois as cebolas, como as batatas aos vencededores (ou serão perdedores, solitários e prisioneiros de calabouços e convés de navios?), sempre dão e deram, além de saborosos e estéticos pratos, interessantes histórias e metáforas: as cebolas, as réstias e dentes de alho, a pimenta do reino, com suas aventuras de navegantes em busca de especiarias. Cravos da índia, nem se fale.

No livro de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, há um trecho em que a personagem Grúchenhka conta uma antiga lenda russa. Um anjo tentar evitar que uma mulher muito má afunde no lago do inferno e, para isso, lembra a Deus que um dia ela teve um gesto de bondade. Arrancou da horta uma cebola e deu a um mendigo. Deus manda que o anjo pegue tal cebola, dê a mulher para que ela a segure e assim se salve do poço. O anjo a puxa com cuidado, mas outros pecadores se agarram a ela para se salvar também. A pecadora, porém, lhes dá pontapés, dizendo que ela é que está sendo salva e não eles. Assim, a cebola se parte e ela acaba se afundando no lago do inferno, para tristeza do anjo.

Sei que aparentemente essa história nada a tem a ver com a terapia da cebola, exceto talvez pelo fato de que associação com o inferno, com o demoníaco é compreensível, já que o ácido sulfúrico deriva do enxofre e convenhamos: cebola, vai feder assim lá no inferno!  Mas nesse nosso tempo de hiperlinks tão facilitados, fiquei tentada a sair navegando à procura de associações, de histórias relativas a cebolas, que se não comprovassem a eficácia da excêntrica terapia, ao menos me mostrassem de onde que é que a psicóloga tirou isso e, claro, que dessem livre curso a minhas divagações poéticas.  Encontrei coisas muito interessantes, relatos sobre as propriedades terapêuticas das cebolas, seu uso milenar por curandeiros, referências a seus poderes para desintoxicar o sangue, propriedades antibacterianas e antissépticas.

As tumbas egípcias estariam repletas de pinturas de cebolas. Eles, aliás, teriam o costume, ao fazer uma promessa, de colocar a mão sobre uma cebola. Antigos escritos hebraicos revelariam que teriam sido um dos alimentos pelos quais os judeus ansiavam após a saída do Egito. Alexandre, o Grande, também teria fornecido enormes quantidades de cebola a suas tropas para fortalecê-las antes das batalhas.

Encontrei também, num site sobre terapia com florais, relatos de gente que teria evitado contrair uma gripe que arrasava populações porque tinha o hábito de espalhar cebolas pela casa, e mesmo a narrativa de uma mulher que teria se curado de pneumonia grave, com auxílio do curioso método. A mulher acordou melhor e a cebola, enegrecida.

Todos esses textos acabaram por me fazer crer que a terapia pode ter realmente alguma eficácia. Ainda que seja o efeito placebo, tanto faz. O que importa é o bem que ela nos traz.  De qualquer forma, colocar aquele prato de cebola ali ao lado da cama, acordar com ele, temperou meu dia, fez-me pensar que às vezes pequenos gestos, recheados de simbologia, são realmente terapêuticos.

De algum modo, o gesto poético-terapêutico e a própria sessão com a psicóloga me fizeram ver o quanto em mim está obstruído, que necessito livrar-me daquilo que me intoxica, dos micróbios, das más lembranças que me envenenam. Não adianta simplesmente tentar negar sua existência, esquecê-los, silenciá-los, pois eles continuam ali, ocultos, trabalhando entre sangue e trevas.

            De certa forma, me agarrei a tal cebola como a uma tábua de salvação e transferi para ela, para estas divagações, para este texto, ao menos parte daquilo que me adoecia. E usando a lenda russa como lição, resolvi compartilhar, afinal ninguém pode se curar, ao corpo e à alma, e se salvar, claro, sozinho.

 

P.S: Se for tentar essa terapia, não aproveite a cebola para preparar o almoço. Algo me diz que não é uma boa idéia.

06-02-2011

O que você precisa é de um guarda-chuva. Agora sim, a história...

 

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            Naquele dia, lá fui eu envelopada em minha saia justíssima, a blusa vermelha com sua flor em vistoso laço, o cabelo domado em escovinha, os olhos muito bem pintados com grossas camadas de rímel que não eram a prova d´água, para um desses encontros de encomenda que podem mudar uma vida. Há aqui certo exagero poético, claro, porque tudo na realidade é bem mais prosaico, mas as palavras não se comportam muito bem nas narrativas, multiplicam-se, e saltam por caminhos e linhas inesperadas, deixam-se seduzir em mote por verbos e adjetivos, e assim, mal se começou a escrever, o eu do escritor e  o do narrador já são tão diversos e desencontrados.

 Quando começou a trovoada e eu saía para a rua, senti ligeiro desconforto, uma espécie de suspeita de que algo pudesse dar errado. Faltava-me algo, intuía, mas não sabia precisar do que se tratava.  Quando finalmente encontrei uma vaga para estacionar, em local distante, desabou a tempestade e a verdade veio em grossos pingos: um guarda-chuva eu não tinha. Permaneci por uns 20 minutos ali dentro do carro, implorando que São Pedro se abrandasse, mas quanto mais rogava à Providência Divina, mais o céu se turvava e mais a água se enfurecia. Vi muitas outras almas saindo apressadas de seus carros, homens e mulheres com seus guarda-chuvas e sombrinhas. Até pensei em pedir carona sob aquelas abas desconhecidas, mas era tão impetuosa a força da água batendo nos vidros, que se eu abrisse, iria ser lavada por um jato e por certo nem ouviriam meus gritos.

                Fiquei à deriva de meu próprio desespero. Lá se iam trinta minutos inteiros, quando a Providência soprou-me um conselho aos brincos. Que eu fosse mais perseverante e obstinada, que saísse à caça de um guarda-chuva, afinal havia sempre tantos ambulantes pela rua, ávidos de faturar alguns trocados. Você desiste sempre, sua fraca! Mas àquela hora e com aquela tempestade, até os ambulantes mais famintos não se arriscariam a ser arrastados pela água.  Fui navegando em meio ao trânsito caótico, procurando uma loja qualquer pelas imediações que vendesse proteção. Qual nada! E assim ia me afastando no tempo e no espaço do meu encontro marcado.

                Até que me lembrei – oh, São Gene Kelly – de que nas cercanias de minha casa, havia uma dessas lojinhas de aviamentos, que vendem bugigangas, tecidos e panos de prato. Lembrei-me de que tinha visto exposto uma vez na calçada um frevo colorido de guarda-chuvas e sombrinhas. Eis então que retorno ao ponto de partida. Parei diante da loja, mas a água ainda caía forte. Por que, devem me perguntar os mais pragmáticos, se o encontro era tão importante, por que não compareci a ele mesmo molhada? Ora, já passaram vocês pela situação de irem a um encontro amoroso ou a uma entrevista de trabalho,  encharcados e pingando água? A umidade e o frio destroem, não só o penteado, mas qualquer traço de autoconfiança e autoestima. O tecido grudando ao corpo, deixando ver mamilos rijos. E o rímel que se derreteria sob os olhos, transformando você, a mulher sedutora e segura, num pierrô sofrido e entanguido. 

                Parada diante da loja, portanto, mais uma vez levantei os olhos para o céu. Oh, Providência, veja só, estou cumprindo a minha parte. Não desisti, antes perseverei, insensata! Mas mesmo aqui  as nuvens negras  não dão trégua. Eis então o que vejo bem no alto da fachada: – é assim que ela responde, minha cara  –  o telefone da lojinha de aviamentos. Não hesitei um momento. Saquei o celular e liguei para aquele número. Expliquei toda a história para a mulher, a importância do meu encontro inadiável, e pedi que ela levasse o guarda-chuva até o carro.  Perguntei antes se não tinha um daqueles grandes e pretos, de que bem gostam os ingleses. Tive ainda que descer, porém, estreando  a nova proteção, para digitar a senha do cartão.

         

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       Veja bem, meu Deus, eu não desisti assim mesmo. Comprei meu bonito guarda-chuva, e com mais de hora de atraso, voltei ao lugar de encontro. Perguntam-me mais uma vez os perspicazes por que também não saquei antes do celular, para avisar ao sujeito do encontro que estava, à força da intempérie, atrasada. Era porque, nessas horas de reveses, meu caro, todas as baterias encontram-se descarregadas, e assim estava a dele.  Disso, ao marcar o encontro, eu já tinha sido avisada.

E assim finalmente, endireitando a saia justíssima, espetando o salto agulha no asfalto, desci do carro. Mas eis que ao tentar alargar o passo, para atravessar o mar que naquele tempo todo se formara junto ao meio fio, ouvi vibrante silvo de um rasgo. Perguntei a uma mulher que passava se fora grande o estrago, se dava a ver-se minha calcinha, e ela disse que não, se eu não dobrasse o corpo ou o elevasse em demasiado. Veja só mais uma vez, meu Deus, vitimada pela fatalidade, eu poderia ter desistido, ter voltado pra casa, com o rasgo entre as pernas, vencida e humilhada.

Persisti ainda assim, renunciando à minha dignidade, enfiando o sapatos e os restos de esperança na violenta enxurrada, equilibrando-me para não ser tragada pela bocarra infernal dos bueiros, de tal forma que  quando entrei, havia mais água neles do que num rio inteiro.  E ao chegar finalmente ao lugar do encontro, ainda precisei subir uma longa escada. E mais uma vez, o guarda-chuva preto mostrou a que veio. Usei-o à guisa de saia para proteger o traseiro. Porém, é claro,  aquele com quem eu tinha ficado de me encontrar já não estava. Não fora? Cansara de esperar? Nunca mais soube. Oportunidade outra nunca mais houve.

                Não tive outra chance de vê-lo – é fato. Por essas e por outras odisseias é que digo, se lhe posso dar um conselho. Não ouse sair, dobrar uma esquina, aspirar o amor que está para além da curva, sem antes lembrar-se: o que você precisa é de um guarda-chuva.

05-02-2011

O que você precisa é de um guarda-chuva

 

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Que protetor solar o quê? Em tempos de ventos e tempestades – e mais uma vez parodiando o poeta Marcos Caiado – o que você procura pode vir de um fábrica brasileira, pequena e obscura, da China ou até de Cingapura. O que você precisa é de um guarda-chuva. Não ouse existir sem um. Não ouse sonhar com um bom emprego ou com amores de perder o sossego, se não estiver preparado para se proteger da corrente caudalosa que sobre nós manda São Pedro. Não cogite tentar comparecer à entrevista para o sonhado cargo na grande empresa ou ao encontro tão adiado e difícil com o objeto amado, se não tiver um guarda-chuva a tiracolo ou ao lado.

            Minha mãe e minha irmã sempre me deram presentes práticos, ou melhor, talvez como um apelo para que eu fosse mais realista e pragmática, para que eu aferrasse meus pés ao chão, em vez de soltar-me como um balão de gás pelos céus da imaginação, tantas vezes esquecida de comprar o essencial para o funcionamento da casa, envolvida e hipnotizada por um bibelô ou qualquer inútil badulaque de amor ou de beleza, bem...Onde ia eu mesma nesse encadeamento de frases?

Pois minha mãe e minha irmã já me presentearam em Natal ou aniversário com uma campainha para o apartamento novo, para o qual eu tinha me mudado havia já um ano e mais um quarto (quem me visitava era a obrigado a esmurrar a porta ou gritar alto, diante de meu alheamento ou surdez embevecida). Já me deram ventilador, tábua de passar roupa, varal para estender a roupa e a alma, agora lavadas e antes sujas; e, claro, um guarda-chuva.

            Quando ganhei o guarda-chuva de minha mãe fiquei levemente decepcionada. Achei o presente de gente simplória, ela tão rude e austera como foi sempre com ela a vida dura, e por fim senti até certa pena daquela mãe-madrasta, por não compreender o valor que pode ter para nossa felicidade os pequenos supérfluos, os gastos desnecessários com flores, perfumes ou joias falsas. Mal supunha eu que mais tarde pena de mim é que sentiria, com essa estúpida mania de sucumbir ao fascínio das pedras e histórias de fantasia.

            Mas seguindo. Não creio que tenha usado muito o tal presente. Devo tê-lo encostado a um canto. Eu era muito jovem e padecia daquele orgulho estúpido e daquela insegurança, disfarçada de arrogância, que caracteriza a juventude. Os jovens têm vergonhas das quais costumam se envergonhar. Preferem ser atropelados a abandonar a mão para os carros na faixa de pedestre. Preferem chegar à escola encharcados a segurar a frágil haste, sustentando acima de si a mão protetora e, sim, de certo, confessando a própria fragilidade, uma vulnerabilidade que é inerente ao humano e não apenas aos pobres e velhos, apoiados em bengalas, que precisam trafegar pelas ruas, sujeitos aos esguichos dos carros velozes e às enxurradas capitalistas da impiedade.

            Anos mais tarde, quando passei uma temporada em Paris, já mais velha e umedecida pelas intempéries e frustrações da vida, levei um guarda-chuva comigo. Mas eu o perdi tão logo cheguei, naquele inverno pesado, que nos obriga a longos casacos, cachecóis, chapéus e luvas. É impressionante o número de objetos perdidos que se encontram nas ruas da cidade festiva durante o escuro e o frio. Não encontrei o meu próprio, mas uma sombrinha esverdeada, dessas minúsculas, infinitamente dobráveis, que se pode carregar na bolsa e que eu trouxe de volta para casa. Ela sobreviveu muito tempo ao meu lado, mas certo dia, esqueci-a no trabalho e ela, decerto, confundindo o esquecimento com abandono, encontrou novo dono.

            Mais uma vez, envolvida, seduzida, alheada das coisas práticas, passei por quase dezena de estações chuvosas, sem eleger um novo companheiro, que estendesse sobre mim a sua mão caridosa. Foram assim anos inteiros, até aquele dia fatídico, em que tive que correr a comprar  um guarda-chuva preto, como manda a boa elegância dos ingleses. Mas a história conto depois, pois este foi apenas um longo e necessário prólogo, e um modo de dizer até breve, até logo!