06-02-2011
O que você precisa é de um guarda-chuva. Agora sim, a história...
Naquele dia, lá fui eu envelopada em minha saia justíssima, a blusa vermelha com sua flor em vistoso laço, o cabelo domado em escovinha, os olhos muito bem pintados com grossas camadas de rímel que não eram a prova d´água, para um desses encontros de encomenda que podem mudar uma vida. Há aqui certo exagero poético, claro, porque tudo na realidade é bem mais prosaico, mas as palavras não se comportam muito bem nas narrativas, multiplicam-se, e saltam por caminhos e linhas inesperadas, deixam-se seduzir em mote por verbos e adjetivos, e assim, mal se começou a escrever, o eu do escritor e o do narrador já são tão diversos e desencontrados.
Quando começou a trovoada e eu saía para a rua, senti ligeiro desconforto, uma espécie de suspeita de que algo pudesse dar errado. Faltava-me algo, intuía, mas não sabia precisar do que se tratava. Quando finalmente encontrei uma vaga para estacionar, em local distante, desabou a tempestade e a verdade veio em grossos pingos: um guarda-chuva eu não tinha. Permaneci por uns 20 minutos ali dentro do carro, implorando que São Pedro se abrandasse, mas quanto mais rogava à Providência Divina, mais o céu se turvava e mais a água se enfurecia. Vi muitas outras almas saindo apressadas de seus carros, homens e mulheres com seus guarda-chuvas e sombrinhas. Até pensei em pedir carona sob aquelas abas desconhecidas, mas era tão impetuosa a força da água batendo nos vidros, que se eu abrisse, iria ser lavada por um jato e por certo nem ouviriam meus gritos.
Fiquei à deriva de meu próprio desespero. Lá se iam trinta minutos inteiros, quando a Providência soprou-me um conselho aos brincos. Que eu fosse mais perseverante e obstinada, que saísse à caça de um guarda-chuva, afinal havia sempre tantos ambulantes pela rua, ávidos de faturar alguns trocados. Você desiste sempre, sua fraca! Mas àquela hora e com aquela tempestade, até os ambulantes mais famintos não se arriscariam a ser arrastados pela água. Fui navegando em meio ao trânsito caótico, procurando uma loja qualquer pelas imediações que vendesse proteção. Qual nada! E assim ia me afastando no tempo e no espaço do meu encontro marcado.
Até que me lembrei – oh, São Gene Kelly – de que nas cercanias de minha casa, havia uma dessas lojinhas de aviamentos, que vendem bugigangas, tecidos e panos de prato. Lembrei-me de que tinha visto exposto uma vez na calçada um frevo colorido de guarda-chuvas e sombrinhas. Eis então que retorno ao ponto de partida. Parei diante da loja, mas a água ainda caía forte. Por que, devem me perguntar os mais pragmáticos, se o encontro era tão importante, por que não compareci a ele mesmo molhada? Ora, já passaram vocês pela situação de irem a um encontro amoroso ou a uma entrevista de trabalho, encharcados e pingando água? A umidade e o frio destroem, não só o penteado, mas qualquer traço de autoconfiança e autoestima. O tecido grudando ao corpo, deixando ver mamilos rijos. E o rímel que se derreteria sob os olhos, transformando você, a mulher sedutora e segura, num pierrô sofrido e entanguido.
Parada diante da loja, portanto, mais uma vez levantei os olhos para o céu. Oh, Providência, veja só, estou cumprindo a minha parte. Não desisti, antes perseverei, insensata! Mas mesmo aqui as nuvens negras não dão trégua. Eis então o que vejo bem no alto da fachada: – é assim que ela responde, minha cara – o telefone da lojinha de aviamentos. Não hesitei um momento. Saquei o celular e liguei para aquele número. Expliquei toda a história para a mulher, a importância do meu encontro inadiável, e pedi que ela levasse o guarda-chuva até o carro. Perguntei antes se não tinha um daqueles grandes e pretos, de que bem gostam os ingleses. Tive ainda que descer, porém, estreando a nova proteção, para digitar a senha do cartão.
Veja bem, meu Deus, eu não desisti assim mesmo. Comprei meu bonito guarda-chuva, e com mais de hora de atraso, voltei ao lugar de encontro. Perguntam-me mais uma vez os perspicazes por que também não saquei antes do celular, para avisar ao sujeito do encontro que estava, à força da intempérie, atrasada. Era porque, nessas horas de reveses, meu caro, todas as baterias encontram-se descarregadas, e assim estava a dele. Disso, ao marcar o encontro, eu já tinha sido avisada.
E assim finalmente, endireitando a saia justíssima, espetando o salto agulha no asfalto, desci do carro. Mas eis que ao tentar alargar o passo, para atravessar o mar que naquele tempo todo se formara junto ao meio fio, ouvi vibrante silvo de um rasgo. Perguntei a uma mulher que passava se fora grande o estrago, se dava a ver-se minha calcinha, e ela disse que não, se eu não dobrasse o corpo ou o elevasse em demasiado. Veja só mais uma vez, meu Deus, vitimada pela fatalidade, eu poderia ter desistido, ter voltado pra casa, com o rasgo entre as pernas, vencida e humilhada.
Persisti ainda assim, renunciando à minha dignidade, enfiando o sapatos e os restos de esperança na violenta enxurrada, equilibrando-me para não ser tragada pela bocarra infernal dos bueiros, de tal forma que quando entrei, havia mais água neles do que num rio inteiro. E ao chegar finalmente ao lugar do encontro, ainda precisei subir uma longa escada. E mais uma vez, o guarda-chuva preto mostrou a que veio. Usei-o à guisa de saia para proteger o traseiro. Porém, é claro, aquele com quem eu tinha ficado de me encontrar já não estava. Não fora? Cansara de esperar? Nunca mais soube. Oportunidade outra nunca mais houve.
Não tive outra chance de vê-lo – é fato. Por essas e por outras odisseias é que digo, se lhe posso dar um conselho. Não ouse sair, dobrar uma esquina, aspirar o amor que está para além da curva, sem antes lembrar-se: o que você precisa é de um guarda-chuva.
21:45 | Permalink | Comentários (1) | Tags: melancolia, histórias agudas e crônicas
Comentários
Risadas. Muitas.
(Conheço bem esses encontros).
Bj.
Escrito por: Milton Ribeiro | 07-02-2011
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