28-04-2015
Prateleiras prateadas
Sempre me encantaram essas prateleiras
prateadas
na roça em que fui criada.
As panelas de ferro
para feijão
cozinhado com toicinho e banha de porco;
para carne de lata,
guardada como tesouro
no tempo das vacas magras,
na falta de eletricidade,
de refrigeradores.
Aquilo que se salga não se perde.
Até a nossa própria carne.
Joga um salzinho que não fede
nem fica podre
- diziam sabidamente os mais velhos
não muito afeitos a bolas de sabão preto
e banhos de bacia.
As vasilhas areadas
na bica d ´água.
Os potinhos de plástico
comportando doces
no alto
ao desalcance
de crianças lombriguentas e esgabiladas.
Os forrinhos bordados
de galos, patos e flores.
O chão batido varrido
com vassoura de piaçava.
A vara pra correr atrás de moleque encapetado
que pirraçava.
A fornalha acesa
para assar milho.
A brasa para aquecer no frio.
O cheiro de querosene
dos lampiões e lamparinas.
Por causa desse amontoamento de utensílios,
voltei fundo aos meus terreiros
de menina.
Mas tornando a voltar às prateleiras,
que são a prova
de que é possível resistir e brilhar
e ser simples.
Nem é preciso ser de ferro ou prata.
Basta
alumínio.
Eu mesma brincava
de fazer prateleiras
de tábua,
à sombra do pé de abacate
varrida,
fogõezinhos de tijolo
para conzinhadinhas,
embora tenha sido tão boa cozinheira
quanto matemática na vida.
As panelas eram latas de extrato de tomate.
E venho brincando até hoje
de casinha,
de casá-las
com a poesia luminosa
que até ontem eu não sabia:
foi esse mundo caipira
que me trouxe.
Com uma trouxa
de roupa amarrada
à ponta de um galho
como um jeca-tatu do cerrado,
vou ter que,
quer queira ou não,
transportá-la
para onde for.
Sem ela, sou um vão.
A dona desta prateleira: Dona Homera, ao lado do marido Sebastião. Em Trindade (Goiás), 2006.
Para ouvir o poema, clique aqui:
08:55 | Permalink | Comentários (1)
Comentários
Sebastião toca delicadamente sua esposa que com mão matriarcal cobre a mão de seu marido.
Ela, no interior, vestida de peixe guarda a fenestra do misterioso lar e fixa o observador com olhar seguro e sorriso tímido.
Ele, no exterior, vestido de anjo aponta ao observador outro sorriso tímido e mira com desejo escondido o mistério que a esposa guarda, bem indiferente ao fogo infernal nas suas costas.
Eles, juntos, dona Homera e seu Sebastião, deixam transparecer forte cumplicidade e união de difícil de definição. ..
Escrito por: Nuno Cavaco | 28-04-2015
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