19-11-2011
Bonança
Terá chegado o dia da bonança?
Depois de tempestades,
de chuvas torrenciais de sapos
e até canivetes.
Diz-me que sim a Esperança,
mas pode ser apenas mais um teste.
A chuva de seres gosmentos
e objetos cortantes
é sempre uma espécie
de Deus Ex-machina,
para uma tragédia humana
que não finda.
E depois na terra devastada
brotam plantas e coisas lindas.
Mas calma no contentamento,
pois a trégua
é apenas uma pausa no tempo,
no vento
e no tormento.
O drama não acaba
quando termina.
Fecham-se as cortinas,
mas na coxia do teatro
os atores chiam
e vivem ainda
os seus três tristes atos.
Pode parecer o desfecho,
mas sabemos no fundo
que é apenas o começo
de mais um enredo.
Não para
no infortúnio
ou na fortuna
o espetáculo da vida.
08:41 | Permalink | Comentários (0) | Tags: poemas
04-11-2011
Sapato Furado
Deixe que eu seja o sapato furado
para o seu pé aleijado.
Já sei a quantidade de calo
que você ganhou
procurando o número exato.
Uma hora era o dedão que rasgava
o bico da bota.
Outra, o calcanhar rachado
que pisava fora
da chinela que deformava
e soltavam as tiras.
O número nunca tinha.
Seu pé nunca cabia.
Te faziam usar palmilha,
consultar ortopedista, o psicanalista.
Ou a fôrma era pequena demais,
ou tão grande que você nadava.
Os vendedores te convenciam
a comprar um número a menos.
E só eu sei como você sofria:
um rei momo, sem pipocas,
entalado na poltrona do cinema.
Calçar bem custa caro,
ainda mais da última coleção.
Você que, como eu,
não é nenhum top de linha,
em vez de pisar boate
ou loja de grife,
freqüentava ponta de estoque
e liquidação.
Suas chances então só diminuíam.
Contentava-se com o modelo que havia.
E como ficava feio
sua calça vermelha
com o mocassim verde-limão.
Foi aí que um dia
você passava pela vitrine e não me via.
Também eu não estava lá.
Sou de uma fabriqueta,
de fundo de quintal.
Me fizeram de encomenda,
mas o dono nunca foi buscar.
Meu artigo é bem macio,
capaz de esticar e de encolher.
Tenho, é verdade,
um pequeno defeito,
tão pequeno, que se não olhar bem,
nem dá pra ver.
Se você me quiser,
é só ajeitar o cadarço
que vale também como um sinal
e pode até virar argola.
Amarre-o no seu pé aleijado
e me encontre lugar tal,
nesse dia e nessa hora.
Decida com cuidado.
Mas não se esqueça:
quem me fez,
jogou a fôrma fora.
P.S: Poema da série "Escritos para uso pessoal e doméstico" 2005
19:22 | Permalink | Comentários (0) | Tags: escritos para uso pessoal e doméstico