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10-08-2011

Sobre doutores e outras bajulações

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Talvez eu tenha mesmo certa dificuldade em aceitar e lidar com a figura da autoridade e ache que no mundo são todos iguais (saiba, afinal, “todo mundo foi neném/ Einstein, Freud e Platão também/ Hitler, Bush e Saddam Hussein/ Quem tem grana e quem não tem”), como canta Adriana Partimpim). Talvez no fundo eu pense que não deveriam existir hierarquias, classes ou castas. Talvez eu seja um pouco rebelde, anárquica ou anarquista.

Não, não disso... Sei muito bem reconhecer a figura de autoridade, conferida pela competência,  conhecimento e até pelos instrumentos um pouco tortuosos e questionáveis da democracia: o voto, o sufrágio universal. Ah, e até a autoridade que advém do passar do tempo, dos cabelos brancos, conquistada ou mesmo imposta pelos laços do afeto e do respeito.

Em minha casa, por exemplo, sempre  fomos acostumados a responder aos chamados de pai e mãe com um “senhor” ou “senhora”, jamais com “o que?”. Isso seria repreensão na certa ou até boca lavada com sabão preto de soda. E nem nunca foi preciso que meus pais usassem de medidas tão severas, porque sempre aceitei de bom grado a imposição, que me parecia simplesmente adequada, até porque eram mais velhos – fui filha temporã – e de origem rural. Era simplesmente o costume, a tradição.

Mas uma coisa com a qual não me acostumo é a tal da cerimônia do arrasta-bunda, do lambe-botas, do puxa-testículo, escancarada e desavergonhada. E com as suas manifestações mais leves e mais sutis: uma simples forma de tratamento usada nas circunstâncias inapropriadas. Por exemplo, não consigo achar natural chamar alguém que não é doutor de doutor. E não sou dos que acham que o termo deveria ser empregado apenas para quem é philososophus doctor ou doutor honoris causa e outros academicismos. Para mim, doutor é simplesmente médico, o que se forma em medicina e exerce a profissão. Usá-lo em outra circunstância é simplesmente forçação de barra.

Os demais são senhores, senhoras, madames, mademoiselles, cara, véi, o escambau, o que mais couber, mas doutor, pelaamordedeus, não! Doutorizar o dono ou diretor rico da empresa, ou o chefe do órgão público, só porque ele detém o poder da caneta, do contra-cheque ou do grito, é no mínimo uma manifestação de subserviência.  Ah, vá lá, se você é mais velho, pode até ser a repetição de um hábito adquirido em tempos em que órgão público era repartição, em que não havia nomeações técnicas, concursos públicos e tudo eram arranjos e favores políticos. Então, era preciso ficar o tempo todo manifestando gratidão e adoração pelo concedente do favor concedido.  Não que estejamos tão distantes desse tempo ainda, mas muitas coisas, convenhamos, mudaram.

E pra provar que não estou sendo tão rebelde ou radical assim, até tolero ver gente do meio jurídico, advogados, juízes, promotores e simpatizantes se tratarem mutuamente de doutor fulano, doutora fulana, porque, pobrezinhos, suas pisquês ainda vivem na Roma Antiga, entre togas, espelhos, jargões e citações em latim.

histórias agudas e crônicas


Senhora é a sua vó! - Mas se você não for se dirigir nem a um médico nem a um vaidoso advogado, por que chamá-lo de doutor? E por que pronunciar esse termo num tom ora hiperbólico, ora meio humilhado. “Ah, doutor, que honra o Sr. aqui!”  E por que repetir mil vezes diante do doutorizado, como se ela fosse mel em sua boca e música para os ouvidos dele? “Está bem para o senhor, doutor?”

Aliás não bastaria usar o tratamento “senhor” quando se desejasse manifestar respeito? Para mim, bastaria. Aliás, para mim seria suficiente que não me chamassem de “senhora”, porque a única coisa que essa palavra me remete é que não, não estou ficando mais poderosa, mas apenas mais velha! (Please, se alguma vez eu for alguma coisa na ordem desse mundo, o que é bem improvável, só me chamem de você. Ainda que eu esteja caindo de caduca e decrépita, façam-me essa caridade: me chamem ainda de você. Ainda que precisem completar “vossa mercê, sua velha vinda do século passado!”)

Confesso que muitas vezes sinto vergonha alheia quando testemunho essas e outras manifestações bajulosas. Coloco-me não só na posição do que encera o chão com as nádegas, mas do pobre senhor(a) rico(a) ou poderoso(a) que as recebe. Costumo observá-los demoradamente, ao subserviente, para ver se noto em sua face humana algum resto de dignidade, ou ao doutor, para ver se vislumbro ali algum sinal de constrangimento ou desagrado. Porque uma coisa  em que sempre me recusei a acreditar é que pessoas com certo  grau de cultura, esclarecimento, modéstia, senso de realidade ou do ridículo, possam se sentir à vontade e massageadas, tendo os pés lambidos e o saco puxado. Ora, alguém que é minimamente inteligente sabe que elogios demasiados, pronomes  ou títulos fora do lugar escondem por trás medos, interesses, e raras vezes legítima admiração ou amizade.

Certa vez, porém, observando o caso de um conhecido, muito inteligente por sinal, que era cotado para importante cargo público, me surpreendi com sua reação de gozo e felicidade ao receber os mais molhados lambidos, os mais ritmados puxões. Espantei-me e manifestei minha preocupação a alguém, que me deu uma interessante explicação. A razão era que pessoas que ocupam importantes cargos de chefia, tanto em estabelecimentos públicos quanto privados, posições muito cobiçadas, alvos constantes de ameaças e conspirações, têm uma estranha necessidade de receber provas de apreço, de amizade, de fidelidade.

 Só assim conseguem acreditar diferenciar seus amigos de inimigos. Aqueles que dão a cara a tapa, que defendem publicamente seu nome e sua posição, aqueles seriam seus verdadeiros amigos, não seriam capazes de traí-lo. Faz sentido. Mas sedutor engano, porque o subserviente em geral é promíscuo ao se submeter, subjugar e submergir. Ora submete-se a um, ora a outro, conforme o vento ou seus interesses sopram.

       Para concluir este texto que já se estendeu demais, fico pensando que esse hábito que tanto me irrita serve de alerta pra todos nós, para não sermos tentados pela sedução da autoridade, para, na hipótese de um dia virmos a ser “doutores de alguma coisa”,  não cairmos nessa perigosa armadilha do ego, da vaidade. Talvez devamos sempre então nos lembrar dos velhos clichês: todos nós tivemos o bumbum lavado, e principalmente “todo mundo vai morrer/presidente, general ou rei/anglo-saxão ou muçulmano/todo e qualquer ser humano”.

 Para ouvir: (http://letras.terra.com.br/adriana-calcanhotto/102226/)

Comentários

Concordo com tudo, menos no caso do médico. Acho que doutor é apenas um título acadêmico, portanto, para ser usado em questões relacionadas à Academia, currículos, etc. Eu não uso esse termo com ninguém.

Escrito por: flavio cunha | 10-08-2011

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