25-03-2009
Maio extemporâneo
Como gosto do mês de maio, do cheiro de maio, do vento fresco que trazem as noites de maio. Maio me trouxe amores, me trouxe um filho. Estou de repente em um março insosso, difícil, mas de repente me sinto em maio. Sinto-me antecipadamente em maio em pleno banco, relendo um livro de Virgínia Woolf, enquanto espero a vez de ser atendida pelo caixa.
Rabisco esta sensação na contracapa do livro, usando um lápis de duas pontas que me lembra a figura horrenda de uma cobra de duas cabeças. Quero escrever sobre isso, mas me disperso, divago, não consigo me concentrar no tema e experimento a aventura de escrever coisas díspares ora com uma ponta, ora com outra. Vai, menina, deixa fluir seu inconsciente na escrita – me aconselhou remotamente um professor daqueles transitórios e inesquecíveis. Bem ou mal sabia o que aconselhava?
Mas a experiência dilacera, cada idéia vai para um lado, como na disputa do cabo de guerra. É o que sou – já me criticaram – este ser sem foco, dispersivo, que nunca conclui nada do que inicia. Uma cigarra – uma cigarra não – um beija-flor que sai por ali e por ali recolhendo o pólen das coisas, e logo se cansa delas, mesmo que sejam flores, ainda que lhes dê beijos. E nossas contradições fazem isso com a gente: elas nos transformam, não nos dois contendores, mas na própria corda que é puxada e, se frágil, partida. Ah, essa constante sensação de dilaceramento...
Puxada para este lado. Tento compreender por que me sinto em maio. São talvez as palavras desse livro, talvez o perfume que eu mesma uso. E uso perfumes antes para mim mesma do que para os outros. Maio sempre foi para mim a época de grandes expectativas, do sentimento febril de uma véspera inexplicável, daquela viagem a Paris, da noite em que um amor antigo tirou seu casaco e pôs sobre meus ombros gélidos, e me beijou pela primeira vez a cabeça, não os lábios, um beijo terno e tépido. Talvez eu tenha me apaixonado por aquele gesto ou pela primavera que começava. Lá em Paris, porque em maio temos um incerto outono, que é para mim, ao contrário, quando enverdecem os brotos nos tocos de arbustos queimados. Nossa seca é minha primavera.
Em maio houve os festivais de cinema na cidade de Goiás. Dizem que alguns lugares são especiais por causa da maneira como o sol incide sobre eles. Roma, por exemplo, berço de nossa cultura, língua, civilização. Uma luminosidade tão bela como nunca vi igual. A cidade de Goiás também é assim. Há uma determinada hora do dia, um determinado ponto em que, quando se olha, a serra reluz mesmo dourada.
Em outros janeiros também me senti em maio. Em Belo Horizonte, outra cidade entre serras, também vi esse mesmo dourado, na Serra do Curral, e me senti em maio. E gostava de pensar que em épocas antigas já encarnei ali, entre minas tão gerais, por isso a familiaridade. Ou quem sabe porque meus ancestrais dali vieram e carregaram em suas peles e olhos o dourado daquelas paisagens. Às margens do rio Vermelho eu estava sempre em maio e apaixonada. Ali eu lia as Memórias de uma Infância Inventada de Manoel de Barros.
Maio me traz a nostalgia do que vivi e do que não vivi. E por que todos não podem em pleno agosto se sentir em dezembro? Que bobagem essa convenção das estações, dos meses, do tempo. Eu também nasci em maio, quando nasceu meu filho. Em maio, não dezembro, é que comemoro meu aniversário inventado. Celebro em maio meus amores reais ou imaginários. Todos merecem tecer seu próprio calendário. O meu – nada posso fazer – já é arbitrário.
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17-03-2009
O fino da fossa
Há pouco tempo, ao chegar a uma festa familiar, assisti a um episódio bastante comum. A anfitriã, tentando preparar para os convidados um ambiente agradável, havia caprichado na iluminação. Tinha decorado a mesa, acendido velas e tocava um CD de Adriana Calcanhoto. Logo, um dos convidados reclamou da tristeza do ambiente, reivindicou uma música mais animada, axé ou música sertaneja, algo assim. Não demorou e o pedido foi atendido. O suposto clima festivo estava instalado.
Noto que muitas pessoas identificam a música popular brasileira ou simplesmente canções com um ritmo mais lento com depressão, tristeza. Parece que a alegria tem que ser gritada. O som nas festas deve ser ruidoso, em alto volume, de forma que as pessoas também tenham que gritar para se entender. Ou talvez para que não tenham que se entender, para que não necessitem sequer conversar.
Podem argumentar que digo isso porque estou envelhecendo, e o tempo vai tornando nossas orelhas maiores, nossos nervos mais sensíveis e suscetíveis a ruídos, mais intolerantes, enfim, vai nos transformando em uns chatos tediosos e entediados. Mas retruco que tanto na festa que mencionei quanto em outras ocasiões em que esse episódio se repetiu, as pessoas que reivindicaram músicas mais animadas já tinham ultrapassado os quarenta anos, não eram, portanto, jovenzinhos no auge da euforia.
A necessidade de escutar apenas músicas aceleradas, alegres talvez esteja, então, associada ao desejo de constantemente estar ou pelo menos aparentar alegria, o que vale para todas as idades. Justamente porque a alegria é supervalorizada. Quando se quer elogiar alguém, é comum dizer: ele vive de bem com a vida, está sempre de alto astral.
Esse tipo elogio me desperta uma estranha desconfiança. Suspeito de quem costuma fazê-lo e sobretudo de quem vive assim, em estado permanente de bom humor. A alegria constante, principalmente se fantasiada de euforia, o riso fácil e exagerado me parecem disfarces para algum incômodo ou conflito, que não ousa dizer seu nome.
Não que eu seja uma defensora de gente azeda. Sei apreciar o valor de um bom sorriso e do bom humor diário, mas quem consegue se manter todo o tempo assim de “alto astral”, senão com uma boa dose de dissimulação? A dor, a tristeza, o mau humor também são inerentes à nossa humanidade e eu particularmente sempre apreciei aqueles que sabem cantá-las. Um de meus CDs prediletos durante bastante tempo foi nada mais nada menos do que “O fino da fossa,”, uma coletânea um tantinho brega, com canções como “A flor e o espinho”, de Nelson Cavaquinho e “Nervos de aço”, de Lupicínio Rodrigues.
Sempre, desde a adolescência, gostei de músicas que muitos consideram tristes e que não me conduzem necessariamente à tristeza, mas antes me propiciam uma espécie de catarse, um deliciar-me com a nostalgia do que não vivi. Devo confessar que por bastante tempo tive sim uma certa inclinação para a melancolia, que nunca me pareceu, porém, infelicidade. De qualquer modo, li ou ouvi em algum lugar de que já não recordo, que na tristeza estamos mais perto da felicidade do que na alegria, porque naquela a gente olha para dentro e nesta, não. Então, com licença: “tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.
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