04-07-2006
Lugares imprevistos do amor II
Banheiros são lugares de acontecimento, principalmente nas boates dos que entendem, se é que me entendem. Lá, nos espaços privativos das imperiosas necessidades humanas, histórias se dão. Muitos romances tiveram início ou sofreram seu termo em sítios assim, nada românticos, e pelo ralo da pia se esvaíram águas tingidas de rímel, amores breves, e golfadas de vômito e desencanto.
Mas os improvisos e imprevistos do amor também ocorrem nos banheiros para os sexos específicos. Com Marta deu-se assim. Ela sempre os freqüentou ingenuamente, sem nenhuma perversão ou pretensão. Aprendeu a decodificar as tabuletas de masculino e feminino, de cavalheiros e damas, senhores e senhoras. Quando havia um bonequinho reto ou uma bonequinha com saia; um sapato de salto alto ou um chapéu; uma cartola que escondia falos ou coelhos, opondo-se a um leque para abanar ou cobrir as vergonhas de Eva, saía-se bem.
Não viessem, entretanto, com aqueles símbolos esquisitos de gametas masculino e feminino. A seta coroando a bolinha parecia sempre indicar que virasse à direita. Virando-se, porém, muitas vezes percebia que à esquerda é que ficava a bola com a cruzinha. Cristã que era, a cruz a levava a persignar-se e nisso ela se distraía, se confundia, e tinha mais erros do que acertos.
Ignorava que eram símbolos pagãos, signos astrológicos que remontavam aos romanos antigos. Onde já se viu, ter que saber que o círculo, com uma seta para cima, representa Marte, o deus da guerra, a masculinidade, e que, com uma cruz embaixo, representa Vênus ou Afrodite, a deusa do amor e da beleza, a feminilidade? Toda essa cultura para poder aliviar-se?!
Em um dia de ignorância, na faculdade, nem tinha fechado o zíper, quando deparou com ele.
– Creio que me enganei – murmurou, desajeitada.
– Sim. Você se enganou – ele ainda pôde divisar as rendas de sua calcinha amarela.
– Não devemos sair juntos.
– É. Podem pensar.
– Sim, podem pensar certas indiscrições.
– E o que pensarão se pensarem?
– O que eu pensaria se visse saindo juntos de um mesmo banheiro um tal homem e uma tal mulher.
– Algo como: eles vieram aqui para ficar a sós. Lá fora, se vistos conversando, ela, quase noiva, ele, prestes a casar-se, chamariam muita atenção, despertariam a curiosidade e o ciúme.
– Tem razão.
– Aqui podem conversar à vontade. Até então não haviam se contemplado como masculino e feminino. Havia gente demais entre eles.
– Sim. Enquanto ele lava as mãos, ela penteia os cabelos, ou retoca o batom. E podem se beijar. Talvez?
– Claro. Quem sabe até tocar-se mais intimamente, tendo por testemunhas apenas o espelho, e essa surpresa e frustração de não terem se encontrado antes de assinarem tantos contratos.
– Aqui está o papel toalha.
– Obrigado. O batom vermelho fica muito bem em você.
– Creio que devo sair primeiro.
– Amanhã então?
– Certo, nessa mesma hora.
– Tome. Leve. Neste papel eu desenhei.
– O quê?
– Ora! O símbolo! O gameta, com a seta – veja bem – apontando para a direita. Olhe bem, antes de entrar. Não vá se confundir, Marta!
(Texto publicado em O Popular, no dia último dia 29 de junho.)
14:48 | Permalink | Comentários (3)
Comentários
a internet como meio de aproximar as pessoas. foi muito fácil te achar. espero que esteja frequentando o próprio blog. vou cumprir o que te prometi. provar o que eu afirmei.
bjos
Escrito por: lauro | 10-07-2006
Aqui neste gostei mesmo, tremendamente, do ritmo. A possibilidade quase telegráfica de dizer muito sem professar, deixar espaço à interpretação. Tem o tom provocador de que tratastes outro dia e um enorme acordo com a sugestão. Buenissima !!!
Escrito por: Z | 15-07-2006
Vim conhecer seu blog e adorei. Como li pouca coisa e tem muito pra ler, voltarei. Depois deixo comentário sobre o que absorvi do que você escreve.
Abraços.
Escrito por: Osair Manassan | 19-07-2006
The comments are closed.